NOTA:Particularmente gosto de quase tudo o que escrevo,porém,esta crônica que agora reedito,sem dúvida,é um de meus textos preferidos.Dona Ruth,em quem me inspirei quando escrevi estas lembranças era uma das personagens da rua de minha infância.Graças à minha prima Sueli Kichel, resgatei uma foto dela (dona Ruth),e com imenso prazer estou formatando estas linhas já bem conhecidas aqui no Recanto,com a inclusão  da  imagem da  minha inspiradora.

(Memórias da minha rua )
A  CARROÇA DE RUTH


“... E as * sacãs * penteavam terreiros nas manhãs de sábados."

Vaguei por aquela rua que não mais existe e de pés descalços permiti ao meu coração pisar alguma manhã de sábado.
Percebi ,aos poucos, que o plano de fundo fora sempre o mesmo.A bodega do Adélio,os braços gorduchos de dona Labibe apoiados sobre o balcão,as mãos entrelaçadas como a fazer uma prece. E quem sabe ,naqueles momentos uma prece estivesse realmente sendo mentalizada dirigida à uma divindade qualquer que só aquele safirado olhar,esmagado entre as bochechas, conseguia vislumbrar.
Um gesto de reconhecimento,talvez, pela fornada de suspiros que saíra no ponto! Pelas filhas: Odete,lindíssima,com a cascata encaracolada pendendo-lhe às costas e Elza normalista,orgulho da família, a “que tocava acordeon”.
Ou,até,pela serenidade que reinava naquela casa simples onde sofás e tapetes tinham cores alegres,sorrisos escancaravam-se em retratos ao longo da parede de madeira e os dedos de Elza provocavam no teclado a sonoridade da rua.
Na manhã pinçada,bolinhas de gude,anzóis,bicicletas...A cancha de bocha em frente à barbearia de Seo Jucelin...Este,feito a pomba do poema de “Raimundo Correia”, era talvez , a primeira alma despertada,ainda que estivesse apenas “raiando sanguínea e fresca a madrugada”.A janela emoldurava –lhe o sorriso farto e, ao sol ,luzia aquele dente de ouro como sua marca registrada.
Modinhas de viola pelos rádios,padeiros,leiteiros,mulheres empunhando sacolas,pipocavam, rumo às compras da semana.Galos cantando dolentes pelos quintais, freguesia rala na bodega da esquina,dona Maria com suas revistas "Seleções" sentada na varanda,Fiel,um vira latas preto ao seu redor,davam o tom ao cenário de sempre.
Percebia-se no ar a presença das estações.Flores e frutos decidiam primaveras ,insinuavam verões .A folhagem enferrujada nos caquizeiros de dona Percília, céu azul e aragem fria ,cometiam outonos; acenavam invernos.
Neste vago passeio do tempo,decidi pinçar uma manhã de outono.
É sábado. A rua do Fomento boceja agasalhada na fina organza da neblina.
A fileira de casas dos descendentes de libaneses retrai-se acabrunhada por trás dos pessegueiros.Algumas janelas já se abriram para o novo dia.Chaminés ,em fumaça, dão recados de afetos que beiram fogões. Anda pelo ar um cheiro de café recém coado e boa leva da piazada alardeia pelos portões as brincadeiras do dia.
As gavetas de trocas vomitam:estilingues,figurinhas,gibis,rolhas de cortiça,baralhos velhos e toda sorte de quinquilharias a ser “negociadas” ao longo do trecho.
E,por que é sábado, *sacãs* penteiam terreiros pela vizinhança.Haverá sempre a visita dum parente ou compadre para o almoço de domingo.É preciso que tudo esteja muito limpo,impecável,quando da apresentação da beleza e viço dos canteiros ao visitante.Touceiras de capim limão destilam odores ao longo da terra varrida.O movimento cadenciado das vassouras é acompanhado , vez e outra ,de uma breve cantoria.O que se avista ao longo da rua são apenas vultos num balé opaco em frente as cercas de ripas.
É sábado! Um dia especial. Presume-se domingo em alegres companhias.Odores de cera delatam a faxina estendida ao longo da rua embrulhada em tule.
De repente...Um tropel,um aceno,e a carroça de Ruth, cruza a rua dos sonhos. Cores berrantes misturam abóbora e verde escuro nas laterais.Pelegos igualmente coloridos e “Pampa”,um único cavalo,singra com toque de solenidade as paralelas de chão batido .Tilintam-lhe os guizos,conduzindo as personagens.
O estalar do chicote corta em fatias finíssimas, ares que rescendem à leite de rosas ,como que direcionando manadas ilusórias em galopes cadenciados à caminho do sol. Na carroça,Ruth e Maria ,a professora,vão às compras.O túnel das araucárias as engole a caminho do açougue mais proximo,à léguas dali.


A rua abre-lhes um sorriso manso, enquanto as sacãs prosseguem na faina de pentear terreiros.
Por que a manhã é de sábado.
Joel Gomes Teixeira



PS.
(*Sacãs *) – galhos de arbustos resistentes ,cortados e postos à sombra para que percam as folhas.Depois,amarrados em feixes,eram utilizados para varrer terreiros .


Texto  reeditado.
Preservando os comentários nas  edições anteriores:


16/10/2016 12:42 - Leda Mara
Que texto maravilhoso Joel,todo ele poético.Me traz também alguns lembranças desses sábados narrados por você,de uma beleza única.Parabéns meu conterrâneo!
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31/03/2016 15:44 - Ernesto Gomes
parabéns
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31/03/2016 15:10 - Dartagnan Ferraz
Iratiense,fiquei comuma inveja danada. Que crônica, cara! Vou pegar uma sacã e limpar a frente da tua casa. Parece que você perguntou o que era xerém, é milho triturado no pilão e cozinhado na água e sal, é o arroz deste véio doido. Abraço.
31/03/2016 13:14 - Chico Chicão
Meu caro Joel. Leio este texto pela terceira vez e revejo uma consistência narrativa formidável. Que bom ler textos assim! O Mundo precisa de leituras assim. É um texto primoroso que deve ser sempre repetido para as pessoas relerem. Pena que muita gente só lê bobagem.Que pena... Obrigado.Fique na Paz!