Assim ou ...nem tanto. 81

O Regresso

Depois de tanta e tão pesada ausência, preparei-me para ti. Na memória o desenho da tua boca firme, o recorte macio do peito, as mãos longas e finas, quase frágeis, a tua avidez que determinava o sentido de tudo em nós. Depois viajaste. Viste tanto mundo, tanta gente que nem de leve voltei à tua lembrança. Apagaste-me. Deixei de existir. Sobraram os destroços de mim e um recomeço cansado, descrente, sem qualidade. Quando, finalmente, conseguia libertar-me de ti, dizes-me que voltas e que me queres rever. Procuro-me como era no teu tempo e acho-me outro de tanto que mudei. Ainda assim tento regressar a tudo o que gostavas em mim. Ao corte de cabelo, à barba crescida, à roupa larga, ao ar desamparado de adolescente tímido. Fico com medo de não te agradar por sentir que, afinal, ainda de ti havia raízes no meu peito. E a hora chega. Vejo-te descer do carro, ajeitar o cabelo, aconchegar a blusa ao pescoço e correr para a porta como se todos os gestos repetissem o passado. No nosso tempo, o toque era breve, a resposta imediata. Agora, porém, sinto que a campainha enche a casa inteira, firme, autoritária, insistente. Olho-me ao espelho para confirmar que estou preparado e seguro. Suam as mãos, tremem os passos. Depois, corro para a porta. Já não sei se para te ver se para acabar com o som gritado da campainha. Irritação foi o que li em ti quando entraste. Olhaste-me dos pés à cabeça, ficaste parada e em silêncio enquanto eu agonizava e concluíste: - Envelheceste muito, essa roupa é ridícula num homem da tua idade.

Edgardo Xavier
Enviado por Edgardo Xavier em 21/02/2017
Código do texto: T5919590
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