EU NÃO SEI DE NADA...

A manhã começava agitada e o burburinho na fila da Unidade Básica de Saúde adentrava o recinto a denotar a impaciência dos que, lá fora e desde a madrugada, aguardavam por atendimento.

Antes que dr. João começasse pelo primeiro do seu extenso agendamento do dia foi avisado de que uma senhora centenária o aguardava lá embaixo, sem condições de acessar o consultório.

Então, como de praxe, desceu para atender as prioridades.

Era a primeira vez que via aquela senhorinha frágil, encolhida numa cadeira de rodas, trazida por um cuidador que , sobre ela ,pouco lhe sabia informar.

Aproximou-se a lhe tomar as características do pulso que batia algo cansado, porém numa ritimicidade de vida heroína, como se obrigado fosse a continuar forte e resignado.

-Bom dia dona Joana, como a senhora está?

Como se palpasse o ambiente com os olhos, olhando para a direção da qual o som viera e sem reconhecer o entorno respondeu algo lacônica : “eu estou viva”.

E o doutor, surpreendido pela resposta e lhe explicando os porquês, continuou a tentar:

-A senhora quer me falar alguma coisa que sente?

“Eu só sei que estou viva mas eu não sei de nada...”

“No que eu poderia ajudar a senhora, alguma dor, lhe falta o ar?

“Eu só sei que estou viva, mas eu não sei de mais nada”.

Dr João, por flashs de segundos, parou para analisar aquele todo, cuja informação para sua pobre anamnese parava por ali.

Então deduziu:

Se fosse ele um advogado diria que dona Joana estava bem “orientada”.

Se fosse um psicólogo diria que dona Joana estava num excelente mecanismo de defesa.

Se fosse ele um policial diria que dona Joana dissimulava.

Se fosse ele um político diria que dona Joana mentia.

Se fosse ele um cientista diria que dona Joana necessitava dum Pet Scan Cerebral.

Se fosse ele um sociólogo diria que dona Joana é um produto do meio.

Se fosse ele um religioso diria que dona Joana cumprira sua missão com afinco.

Se fosse ele um místico diria que dona Joana já pertencia a outra dimensão...e precisava só descansar.

Mas...

Como doutor João era apenas o clínico do postinho, percebeu claramente que já não mais poderia atrapalhar.

Portanto, não demorou muito para entender (e para escrever!) que essa seria a melhor maneira de muito ajudar a dona Joana.

Nota: verídico, nomes fictícios.