Copenhague Zero Grau - Guerras de Troia
Comparando o passado com o que vejo na atualidade, tudo me confirma as suspeitas de que Europa não mudou muito nestes últimos cinco mil anos. Anteontem à noite, num café por nome "Sommerskov", Turquim apareceu-me despejando lágrimas lá de cima dos seus quase dois metros de altura, sem fazer caso do escândalo que aquela explosão sentimental provocava naquele templo de gente comedida. Eis que conta a sua história, a qual apenas resumo por não achar que seja de todo original.
É onde um piloto da frota da senhora Cristina Onassis, ele natural da Ática, terminou por levar-lhe a amada, dele meu amigo Turquim, pra viver na ilha de Rodes, onde o referido piloto tem uma padaria de sociedade com um primo em segundo grau. O que Turquim não entende é que a bela dinamarquesa de olhos claros o trocou, ele músico e poeta, por um piloto cuja única arte é saber ler as cartas marinhas. Bom, o fim provável da história é a sua bela Helena terminar uma padeira gorda numa ilha grega cada vez mais coalhada de turistas do Norte. A não ser que...
A não ser que Menelau, quero dizer, Turquim, organize uma expedição punitiva contra Troia. Sim, é isso que sugiro ao meu amigo gigante. Ele mesmo seria o comandante, o ataque seria por mar, como nos velhos tempos. Troia seria invadida, saqueada, destruída, Helena seria trazida de volta para Copenhague, o piloto poderia acabar de mil maneiras, à escolha. Turquim não me ouve, continua contando, contando, desfiando seu rosário de razões, as culpas que não teve, as vezes que tentou reconciliação... Não me ouve, definitivamente. Peço uma Tuborg. Vou encharcá-lo de cerveja, esse homem é uma esponja quando magoado. E precisa recuperar essa água que verteu pelos olhos. Mais uma, mais outra e, enquanto isso, desistindo de prestar-lhe atenção e dar-lhe palavras de ânimo, coisa inútil nas circunstâncias, meu pensamento escapa e vaga longe, longe dali.
Povo marujo esse povo grego, até hoje. E continua roubador de esposas. A história do gigante Turquim não me deixa de comover, mas o que me traz mesmo é preocupação. Também tenho a minha Helena e de troianos e similares o mundo anda cheio, não há só os que trabalham como pilotos na frota da senhora Cristina Onassis. Sem contar o caso da Mitologia, é a terceira vez que ouço história semelhante. Penso cá com meu fechecler que, a dar algum conselho a Turquim, o mais decente será mesmo sugerir que prepare a tal expedição punitiva, providência que deve ser do inteiro agrado dele, se é que o conheço, mas que não admitirá facilmente, pois é um homem civilizado, um europeu do século quase XXI e não um aqueu da pré-história grega. De toda maneira, ele só pode mesmo é preparar a expedição, duvido que a concretize. O cujo é refugiado político com passaporte das Nações Unidas e não é de um dia pro outro que se pode conseguir um visto de entrada na Grécia com esse meio documento de identidade. Até que lhe carimbem o passaporte e ele encontre uma passagem barata, essa mágoa e essa ira já terão se esvaído. Também, coitada, pra que impedir que uma moça de país super adiantado aprenda a fazer pão em forno de barro? Quase digo a Menelau, quero dizer, a Turquim, que o melhor é deixar a moça em paz e arrumar outra Helena. Além das delícias de uma vida mais primitiva, ter-lhe-á dado o sol de graça para o resto da vida.
Não digo. Não é bom brincar com esse gigante ferido, pelo menos hoje à noite. Amanhã, ali pelas três da tarde, quando acordar e estiver curado desse porre, vou tentar clarear-lhe os horizontes psicológicos, que esse inverno e essa neblina não ajudam mesmo no resto. Amanhã, apresento-o para uma espanhola, minha amiga, mulher sensível e inteligente, que o fará esquecer seu desengano mitológico. Conheço bem essas coisas de amor e dores eternas, e o quanto duram. E a espanhola muito mais.
(Série Copenhague Zero Grau)
(Copenhague, Dinamarca, fev/1980)