Quarto-universo
Para quem via de fora, o espaço ocupado pela essa menina era um quadrado apertado, bagunçado e escuro. E era mesmo. Gostava de se refugiar em seu quarto para ouvir sua voz. Era ali que se sentia segura. Era seu universo, onde podia viver e dar vida a tantas vidas que tinha em sua imaginação. Podia ler e escrever, mergulhar em lugares e personagens, sair da realidade.
Parecia viver isolada, ser solitária, não sociável. Deixada sozinha, mas não era assim. Em seu quarto-universo tinha as melhores companhias, poesias e lugares. Pudera conhecer homens e mulheres de intelecto graúdo, personalidades diversas e amores sem fim. São seres indecifráveis e misteriosos que encantam e estão sempre pontos para quando requisitados, a qualquer momento, atenderem ao seu pedido como quem atende a uma ordem.
Seu maior desejo era ser aquilo, que segundo ela, eles eram. Eles eram tão heróicos, tão corajosos, tão enigmáticos. Ela poderia ser assim através de seus olhos, suas ações, suas palavras. Sua liberdade era tão palpável naquelas linhas. Mais que isso, dizia com ardor nos lábios que lia aquelas palavras, que toda a sua vida, toda os seus sonhos, todos os seus sentimentos, todos os seus medos eram lidos e rimados, antes de serem vividos e imortalizados.
Com um vívido olhar de encanto e magia, passava horas e dias, debruçada em meio a mundos, sonhos, fantasias, cores, alegrias e suspiros. Ria. Chorava. Desesperava-se. Enfurecia-se. Tudo no mesmo instante ou em intercalados parágrafos. Andava e se equilibrava por linhas e entrelinhas. Fazia malabarismos com as palavras desconhecidas. Jogava queimada com os diálogos dos personagens. Folheava com reverência e relia cada frase marcante sutilmente. Página por página, seus olhos brilhantes e mansos, refletiam sua devoção. Donas de uma calma inebriante, ela consumia as palavras e as palavras a consumia.
Os clássicos eram os seus prediletos desde os 12 anos, eram o seu pão de cada dia. Sua iniciação na ordem dos cavaleiros andantes das letras. A cada noite, em sua cama, deitava com alguém diferente ao seu lado. Sua primeira aventura se deu nos sertões, na bravura de Cirino e nas súplicas inocentes de Inocência, a musa de Taunay que levava o mesmo nome de sua avó. Outra noite se perdeu nos olhos de ressaca de Capitu e outra ainda na Missa do Galo ou nas cartas da Cartomante de um Machado afiadíssimo com as palavras. Perdoou e redimiu a Lucíola; chorou no fim da noite a morte de Iracema, a virgem dos lábios de mel; e admirou a beleza da Viuvinha que atravessava a rua e saudava Aurélia e Seixas, que conversavam com senador Alencar.
Foi até a França e conversou com os Três Mosqueteiros de Dumas. Derramou algumas lágrimas com os Miseráveis e se intrigou com Vitor Hugo, que mostrou o que existe de pior no ser humano. Sentiu o amor e a loucura que se apossou de Anna Karenina, de Tolstói. Conheceu a sociedade russa e sentiu o frio que emanava das páginas de Dostoievski. Se preocupou, assim como Orwell, com a sociedade de 1984. Ficou a mercê dos heterônimos de Pessoa e se levou pelas sábias palavras de Quintana. Ficou em êxtase com Álvares de Azevedo e Lorde Byron, que misturavam loucura, poemas, bebidas e erotismo. Envolveu-se no clima ácido e viciante de Augusto dos Anjos e Lima Barreto, acompanhados de Euclides da Cunha.
Não sabia o que pensar de Eça de Queiroz, que ao mesmo tempo lhe fascinava e lhe horrorizava. Não tinha em seu cerne nenhum preconceito ou distinção; às vezes dormia com Arendt ou Bauman, Lispector ou Florbela, Isabela Freitas ou John Green. Quando seu corpo pedia uma presença mais cálida, voltava-se para as histórias marcantes de Jojo Moyes. Passeava nos vestidos elegantes de Madame Bovary de Flaubert. O xodózinho era o casal Elizabeth Bennett e Fitzwilliam Darcy (Mr. Darcy) de seu livro preferido, Orgulho e Preconceito de Jane Austen, o que poderia ser considerado um clichê, mas ela não liga.
São tantos autores e obras que fica difícil dizer. Seu corpo se contorcia com miríades de emoções, a cada livro que chegava a sua mão, as quais sentira sem vivê-las de fato. Passeava no Olimpo com Percy Jackson, lutava nas guerras em busca do Trono de Ferro e deixava seu nome registrado nas Crônicas de Nárnia. Comia do fruto proibido das laranjeiras de Casimiro e ouvia o sabiá de Dias. Bebia o veneno que Shakespeare deu a Romeu e jogava moedas na fonte dos desejos, dos poetas e sonhadores que partilhava das mesmas emoções.
Entremeando momentos em que vivia uma tragédia grega ou uma divina comédia, se entregava a amores platônicos. Incendiava-se com o ódio e o ciúme e logo após estava embebida de lágrimas da mais pura melancolia que se possa sentir. Ela era ela e era muitas. Era uma simples menina em seu quarto-universo e seus livros.