A BOTIJA - O DESENTERRO (capítulo inédito do romance A SAGA DE ZÉ BEATO)

A BOTIJA – O DESENTERRO

O tempo resolveu encerrar seu expediente mais cedo naquela quarta-feira, cinco de outubro. Tava um dia distraído, mas que trazia algo de misterioso. O sol entregara o dia para a noite de forma nostálgica e candente. Mas o ocaso trouxe um vento morno, esquisito. A lua botou a sua meia-cara grande no céu, porém logo escondeu-se por trás de nuvens carrancudas.

Sete da noite. Porto calmo. Movimento quase nenhum. O vento morno abraça a cidade. O barqueiro Severino acena à distância, à ilharga do trapiche. O cais traz lembranças antigas que não são suas. Lembranças de chatas forasteiras. Cheiro de maresias e boas alvíssaras.

- Seu Beato, aqui – gritou Severino, bastante animado, como sempre.

- Fale, seu Severino – respondeu o Beato.

- Precisa de ajuda? - perguntou o barqueiro.

- É, se quiser me dar uma mãozinha aqui, eu agradeço.

Zé Beato ia bem equipado. Levava o pacote grande com as ferramentas – picareta, pá e enxada -, uma mochila grande de costas com o malote de lona bem dobrado e agasalhado dentro dela, um pacote de velas, um crucifixo, um rosário, uma garrafa plástica de dois litros com água benta e uma caixa de fósforo. Na mão levava uma potente lanterna, com pilhas novas e no bolso um isqueiro. Também levava a sua rede. Tencionava dormir, ou pelos menos descansar em sua baladeira até às cinco da manhã, pois havia combinado com o outro barqueiro a sua volta para as seis horas.

- Mas até parece que o amigo vai acampar – bisbilhotou o barqueiro.

- E vou mesmo! – mentiu o quase novo rico, pensando consigo. - Bicho mexeriqueiro arretado é o tal de barqueiro. Parece barbeiro! Deus do céu! - Consultou o relógio. Sete e quarenta. - Seu severino, – disse Zé Beato, - eu vou rapidinho ali na praça buscar uma água para eu levar.É bem rapidinho, tá? Quer alguma coisa?

- Quero. Dá pra me trazer uma carteira de cigarro. Pode ser qualquer marca. Pode ser? - indagou o barqueiro.

- Tudo bem. Pode deixar que eu trago. É bem rapidinho. - E saiu. - Na verdade, isso tudo era só uma desculpa para tomar uma chamada de cana. E foi isso que fez. Pediu uma dose dupla de velho barreiro e mandou goela abaixo de uma lapada só. Pediu uma carteira de cigarro, uma garrafa de água mineral gelada, pagou e voltou rapidinho para a lancha voadeira.

Oito e dez. Hora de zarpar. Zarparam. Quarenta minutos de viagem. Chegaram. O barqueiro ajudou no desembarque ao pé da velha ingazeira, ao lado de um trapiche velho abandonado e, mais uma vez, perguntou ao Zé Beato se não queria mesmo que viesse buscá-lo e mais uma vez Zé Beato agradeceu e disse que não era preciso porque não sabia o tempo que ia ficar pescando e que deveria dar uma esticada até ao sítio de um amigo seu nas redondezas. Portanto não tinha uma data certa para voltar. Mas muito obrigado e um bom regresso desejou ao barqueiro mexeriqueiro.

Zé Beato, de lanterna na mão, procurou acomodar, provisoriamente as tralhas no pé da árvore. Sentou para descansar um pouco, pois ainda sentia-se fatigado do porre do dia anterior. Mal sentou-se na raiz da árvore, ouviu o rasgar de uma coruja no meio do negrume e soledade da noite. Cantou a mãe-da-lua. Por si só o canto da mãe-da-lua já é arrepiante, lamentoso e agourento. Por sua vez o rasgo da rasga-mortalha é bastante sinistro, medonho e lastimoso. Só quem já ouviu tais cantos, - nem deveriam ter o nome de cantos – sabe o quanto horrendos são. Ambos os animais são ditos de maus presságio. Mas Zé Beato não era homem de temer nada. Pelo menos as coisas de cima da terra.

Rasgou um cantinho do embrulhão e tirou o terçado. Facão rabo de galo. Super afiado. Respirou, focou a lanterna na direção que a alma penada do homem que tinha voz de coronel lhe indicara e seguiu, contando as passadas. Nem foi necessário tanto rigor na contagem porque logo avistou o troco da bacabeira. Mesmo na escuridão, notava-se a formosura e viço da palmeira. Na mesma direção, mais dois passos. Parou. Sentiu uma coisa estranha percorrendo-lhe o corpo. Os cabelos ficaram em pé. Uma coisa que vinha de dentro. Meu Deus - pensou. - É aqui. Havia no chão apenas uns raquíticos pés de samambaia. Voltou ao pé da bacabeira. Fez meia-volta e novamente seguiu em frente. Um, dois. Dois metros – contou. - É aqui e de novo sentiu um arrepio. Dessa vez mais forte e acompanhado pelo rasgo da coruja e pelo canto da mãe-da-lua.

Com a lanterna em uma mão e o terçado na outra, voltou à ingazeira. Sentou-se e benzeu-se. Bebeu um gole d'água que ainda continuava bem fresquinha. Benzeu-se de novo. Olhou no relógio. Dez horas. Muito, muito longe, ouvia-se um galo desregulado cantando.

Tá na hora, seu Beato, - falou pra si mesmo. Primeiro pegou o pacotão e levou até o local da botija. Numa segunda viagem, levou o restante das coisas. Deixou só a rede no pé da ingazeira. Rasgou a embalagem das ferramentas e, com a enxada, raspou o possível lugar da botija. Em seguida, ajoelhou-se no chão, pediu proteção a Deus e rezou todas as rezas que treinara em casa. Acendeu quatro velas, distribui-as à volta do terreno, concentrou-se, colocou o rosário no pescoço, aspergiu água benta em abundância, ao seu redor e começou a cavação. Cava, que cava, com todo o cuidado do mundo, para não estourar o pote, com quinze minutos já tinha feito um buraco considerável, com cerca de três metros de rodo. Sorte que a terra era bem macia. Silêncio total. Até a coruja rasga-mortalha e a mãe-da-lua pareciam ter sumido. Água fria pra garganta e mais cavação. Aí, assim que meteu outra vez a picareta na terra, alguém lhe cutucou nas costas, deu uma gargalhada estrondosa e perguntou por quê é que ele não ia trabalhar em vez de ficar procurando fortuna fácil.

Zé Beato ia se virar e dar uma porrada com a picareta em quem estava querendo lhe atrapalhar, mas, pensou rápido e, prudentemente, deu mais uma aspergida de água benta em torno de si, sem olhar para trás, ao tempo em que manteve bem apertado nas mãos o crucifixo. Aí a gargalhada ecoou à distância e no ar impregnou-se um terrível fedor de enxofre.

O som produzido pela ferramenta na terra agora soava diferente. Mais abafado. Precisava, portanto, de mais cuidado. De cima da bacabeira alguma coisa, do tipo um torrão ou um coco foi aturado dentro do buraco. Devido à escuridão não dava pra divisar o que era ao certo. Mais um torrão e um assovio. Mas reza. Mais água benta. Das bandas da ingazeira veio o berro de um bode. Do lado oposto apareceu um barulho superestridente de chocalhos. Em todos os tons.

Com o terçado, Zé beato fez um espeto de madeira, com a ponta bem fina para sondar a terra. Foi não foi, fazia a sondagem na terra, enfiando o espeto buraco abaixo, para ver se topava em algo resistente.

Um choro lamentoso, bem no tronco do pé-de-cacaba, quase faz Zé Beato parar de cavar. Recuou um pouco, mas não parou porque ele sabia que tudo fazia parte dos planos do “Coisa Ruim” pra não conseguir o seu intento.

Mais um cutucão e mais uma gargalhada em suas costas. Um latido de cachorro ultragrave. Parecia um treme terra. Vinha-lhe à mente os conselhos da alma penada que tinha voz de coronel antigo. “Não seja levado pela curiosidade”. “Não caia em tentação”. E reza, reza, dá-lhe reza.

Ouve mudança no som da ferramenta. Já tinha mais de meio metro de escavação. Opa. Um som de madeira. Meio trêmulo, focou a lanterna com atenção, cutucou a terra úmida com o espeto e notou um tipo de assoalho de madeira. E era. Era uma proteção em madeira rústica de acapu. Acapu é excelente madeira. Tem durabilidade incrível, seja na água, terra ou ar.

Agora mais calmo, foi descobrindo aos poucos aquele retângulo, formado em achas de madeira, com aproximadamente um metro de comprimento, por oitenta de largura. Mais um susto. Um relincho e um sopro às suas costas. Arrepio do dedão do pé ao cucuruto. Mais reza e aspersão de água benta.

Zé Beato conseguiu raspar e jogar fora do buraco todo o excedente de terra que estava sobre a proteção de madeira. Com muito cuidado, aluiu o primeiro pedaço de acapu. Não era tão pesado, mas é que estava bem grudado à terra nas extremidades. Conseguiu retirar um a um os troncos e jogá-los para fora da cova. Nesse momento escutou uma barulheira infernal, jamais ouvida ou pensada antes. Mais coisas eram jogadas de cima da bacabeira e um fedor horrível se evolava no ar. Foi atingido por um jato de alguma coisa morna – pensou em urina -, na parte de trás das pernas. Aí não teve como se manter calmo. Meteu a mão no bolso e num supetão virou-se para ver do que se tratava, mas só enxergou um vulto rabudo e com chifres, virando bunda canastra e jogando fogo pelas ventas. Devido à aflição, não deu para divisar a fisionomia do traste. Mas a voz... a voz ficou gravada na mente do Zé Beato. E era uma voz conhecida, só não dava era para pensar nesses detalhes em hora tão agoniante. Com a apresentação do crucifixo, o cão fugiu de retro, dentro da mata.

Empapado de suor, Beato voltou à empreitada. Ajustou bem o foco da lanterna e viu perfeitamente, um pote enorme, de boca muito larga e dentro dele duas botijas, uma acomodada sobre a outra.

Retirou a primeira e com o terçado deu um golpe sobre o lacre de barro que envolvia a boca do pequeno pote. Mas, para seu desespero, quando a tampa espoucou, apenas uma aterradora nuvem com milhares e milhares de maribondos, trombando uns nos outros e zoando alto, infestou o ambiente de forma dominante e soturna. A botija se encantou! Coisa muito comum nos casos onde as regras não são seguidas à risca.

A aspersão de água benta, milagrosamente, limpou o lugar, tornando-o sereno e acolhedor. Ao longe uma galo cantava. De volta ao buraco, Zé Beato, sempre com o crucifixo e a água benta à mão, aproximou-se para verificar a outra botija. Em tamanho e forma era igual à primeira. Tampada da mesma forma. Arrepiou-se ao tocá-la com a mão. Aspergiu mais água benta e iluminou-a com uma nova vela. Tudo calmo. Colocou a vela, em cima de uma das toras de acapu e com as duas mãos pegou o pote por baixo, com muito cuidado. Rezou com fé e trouxe a botija ao encontrou do peito. Deveria pesar de uns doze a quinze quilos. Mas não era hora para fazer contas. Aliás, sequer poderia garantir que dentro dela havia alguma coisa de valor. Não podia. Calmamente, rezou um Pai-Nosso e o Credo. Colocou todas as coisas dentro do malote, à exceção das ferramentas, e caminhou rumo à ingazeira, com a lanterna e os braços cruzados, segurando a botija, com se fosse um bebê. Ao pé da velha ingazeira, recostou-se no seu tronco, forrado com a rede. Olhou no relógio. Quinze minutos para a meia noite. Acendeu uma vela e com um espinho de pupunha fez um furinho na garrafa de água benta que foi pendurada num dos galhos da velha árvore que ficou a gotejar durante todo o restante da noite.

Dominado pelo cansaço, Zé Beato adormeceu e só acordou com a algazarra de araras e curicas, já ao alvorecer, quando o sol já se espreguiçava para levantar. Cinco e meia da manhã. Acordou agarradinho ao seu tesouro (?). Relembrou os fatos da noite que atravessar e se benzeu. “Valha-me Deus!” Que noite! Quanta coisa! - pensou. Agasalhou a botija direitinho no chão, entre as raízes da ingazeira e voltou ao local onde arrancara a mesma. Pegou a enxada e puxou toda a terra para dentro e ajeitou o morrinho que ficou, pois sempre sobra terra nesses casos. Com o terçado cortou uma galhada se samambaia e fez uma coivara por cima da terra mexida. Logo, logo a natureza se encarregaria de despistar a ferida na terra. Recolheu as ferramentas – picareta, pá e enxada – e levou-as para a beira do velho e bom guardador de segredos, o Tocantins. Uma a uma arremessou todas no mais longe que pode dentro do rio. Tirou a roupa, deu um mergulho e ao longe enxergou uma voadeira, rio acima, cortando água. Rapidamente foi pro pé da ingazeira, pegou todas as coisas, acomodou-as na mochila e a mochila dentro do malote juntamente com o seu pote de barro e, como quem carrega um recém-nascido no colo, dirigiu-se para o velho trapiche para embarcar na canoa voadeira, pilotada por seu Zé Cearense, - também conhecido por Zé Mouco - o outro barqueiro, velho carrancudo que para confirmar a exceção da regra não gostava de mexerico.

- Vamos – disse o barqueiro, com cara carrancuda que não gostava de disse-me-disse. E foram.