O "Intelequituau" - Ou "Pai Modelo"
Querendo colocar os papos em dia depois de uma longa temporada sem nos encontrar, eu e um amigo nos afastamos da barulheira da criançada naquela festinha de aniversário, em um buffet, e ficamos mais perto da saída das cervejas servidas em copos.
- Vamos ficar por aqui. O ponto é estratégico, já que é por aqui que as mocinhas saem com as bandejas de cerveja.
Rindo, nós dois nos ajeitamos em pé, apoiados em um minúsculo balcão, e pusemos-nos a conversar sobre as últimas novidades em livros, os últimos lançamentos, e a aceitação ou não deles. Além de colegas de trabalho no comércio de livros tínhamos também em comum a paixão pela leitura e a conversa fluía com a naturalidade habitual entre bons amigos de longa data.
Algum tempo depois um rapaz de seus trinta anos mais ou menos aproximou-se como se nos conhecesse e simplesmente parou e encarou-nos risonhamente.
-Desculpem, amigos, mas não pude deixar de ouvir um trecho da conversa dos senhores. Falavam justamente de um assunto que deveras me empolga. Sou um apaixonado pela literatura e...
Achei engraçada a maneira do rapaz, expressando-se com certa pompa, mas mantive-me sério, nada a fim de que ele participasse de nossa conversa. Estávamos trocando informações que interessavam apenas aos do ramo de livros e cada um de nós dois poderia fornecer ao outro importantes dicas a serem aproveitadas nos fornecedores o quanto antes.
Pensei em cortar delicadamente o assunto com ele, mas a essa altura aproximou-se um menino de nove ou dez anos e encostou-se nele, com intimidade de filho.
- Esse é meu primogênito. Meu filho único, André, e como eu dizia aos senhores, o que mais quero é que ele puxe pelo pai. Que tenha o mesmo gosto e prazer que eu com a boa literatura.
“Começou bem...Primogênito e filho único ao mesmo tempo...O mais velho e o único...Já dá pra ver que lê muito mesmo...”
- Andei comprando alguns bons livros para ele, mas parece que não há jeito. O negócio dessa meninada é mesmo computador. Digam a ele, senhores, por favor, o quanto é importante na vida da gente a boa e constante leitura dos ”clássico”.
“Dos clássico...”. Eu e o amigo em um papo que nos interessava financeiramente, profissionalmente, e o chatinho desce de pára-quedas no meio da conversa e nos intima a dizer ao menino o que ele tem que ler.
- Meu amigo, eu e meu colega estamos tratando de negócios, aproveitando esse encontro rápido na festa e, sinceramente, acho que seu filho está mais interessado em curtir a festa do que ouvir dois coroas dizendo o que ele deve ler; não é mesmo, garoto?
O menino fez uma cara boa, concordando de imediato comigo e virando-se para voltar à festa, mas o pai o segurou pelo ombro.
- Volte aqui, filhinho, tenho certeza de que estes senhores poderão dar-lhe boas dicas para que você cresça inteligente e preparado como o papai.
Com essa eu quase soltei uma gargalhada das boas. O cara se auto-elogiava perante o filho sem a menor cerimônia! Inteligente e preparado como o papai! Essa foi demais pra minha paciência, mas permaneci quieto.
A mãe surgiu em socorro do filho.
- Venha, filhinho. Venha comer os brigadeiros antes que acabe tudo.
Sem o menino por perto não vi mais motivos para cerimônia. Quis testar o “papai inteligente e preparado”:
- Então o amigo lê muito. Isso é muito bom. Quais os autores que prefere?
- Literatura em geral. Gosto tanto da estrangeira quanto da brasileira, senhores.
- Autor americano, qual o senhor me aconselharia? Sabe que em casa de ferreiro, espeto de pau. Eu e o colega aqui trabalhamos tanto com livros que mal temos tempo de ler.
Depois dessa frase o alívio no semblante dele foi mais do que evidente. Encontrando pela frente dois ignorantes ele não passaria apertos.
- Aconselho a leitura de Mik Vatarí, um autor fabuloso. Gostei por demais de lê-lo e...
O colega o atalhou:
- Não foi esse que escreveu “O Faraó”?
- Exatamente, amigo. Exatamente. Uma obra vibrante, tipo do livro que nos prende a atenção do começo ao fim. Muitíssimo bom mesmo. Recomendo deveras.
A partir daí fomos brincando com ele por um bom tempo. Falamos sobre “Cem Anos de Solidão” de Mário Vargas Llossa, “O Amor nos Tempos do Cólera” , de Jorge Luiz Borges, “As Vinhas da Ira”, de Faulkner, “A Relíquia” , de Rachel de Queiroz”, “Iracema”, de Eça de Queiroz, “Coroa de Ervas”, de Almeida Prado, e todos eles ele nos recomendava enfaticamente, deveras, com certeza que nos agradaria imensamente. Em momento algum percebeu que estávamos nos divertindo com ele. Sua ignorância, sua pose de pai-exemplo, sua arrogância e exibicionismo, não o deixavam perceber isso.
A essa altura o menino voltou e tornou-se a encostar-se no corpo do pai, que o abraçou e disse-lhe, feliz da vida:
- Papai estava aqui explicando algumas coisas sobre literatura a estes senhores, filhinho. É como eu já te disse, Andrézinho, nem todos têm a mesmo oportunidade de estudar que nós tivemos. Você tem que aproveitar enquanto é novinho para aprender e crescer sabendo das coisas. Do mesmo jeito que seu pai.
Eu já estava de saco cheio daquele panacas, mas mesmo assim não me esqueci que não se deve humilhar um pai na frente de seu filho. Deve-se evitar isso tanto quanto possível. Dirigi-me ao menino.
- André, faça-me um favorzão, garoto: vá até lá fora e veja se chegou um rapaz gordinho em um “Escort” prata. Só veja isso para mim e volte pra me dizer.
Mais do que depressa o menino se foi e mais do que depressa eu disse ao pai dele:
- Moço, eu tenho idade para ser seu pai e por isso vou lhe dizer uma coisa: você, com essa sua falsa cultura e genuína ignorância, está mesmo é fazendo mal ao seu filho. Está fazendo com que ele acredite em um ídolo de pés de barro e cabeça de vento. Você nunca leu um só livro em toda sua vida, e eu e meu colega estamos nos divertindo com sua “sabedoria” de orelhada. O autor de “Cem Anos de Solidão” é Gabriel Garcia Marques, de “As Vinhas da Ira” é John Steinbeck, Mika Waltari escreveu “O Egípcio”, “A Relíquia” quem escreveu foi Eça de Queiroz, e assim por diante. Você foi incapaz de acertar um único nome com relação à obra, e recomendou-nos até quem nunca foi escritor. Desse jeito, meu caro jovem, seu filho, dentro de poucos anos, perceberá que o pai só tem pose. Pose daquilo que não é nem nunca foi. E aí, rapaz, adeus respeito. E agora, com licença, que eu e meu amigo vamos tentar recuperar o tempo perdido na conversa.
Achei que depois dessa ele se mandaria dali o quanto antes, mas que nada. Esperou a volta do filho, passou a mão por seus ombros miúdos e foi saindo com ele enquanto dizia para que ouvíssemos:
- Essa gente da antiga, meu filho, é tudo cabeça dura mesmo. Não dá pra ter conversa séria que logo eles vêem com palhaçadas. Já esqueceram o que aprenderam e não aprendem as coisas atual.
Eu e meu colega caímos na gargalhada. O intelectual dizia, ainda por cima, “as coisas atual” !!! Coitadinho do menino. Até que era bem bonzinho.
Querendo colocar os papos em dia depois de uma longa temporada sem nos encontrar, eu e um amigo nos afastamos da barulheira da criançada naquela festinha de aniversário, em um buffet, e ficamos mais perto da saída das cervejas servidas em copos.
- Vamos ficar por aqui. O ponto é estratégico, já que é por aqui que as mocinhas saem com as bandejas de cerveja.
Rindo, nós dois nos ajeitamos em pé, apoiados em um minúsculo balcão, e pusemos-nos a conversar sobre as últimas novidades em livros, os últimos lançamentos, e a aceitação ou não deles. Além de colegas de trabalho no comércio de livros tínhamos também em comum a paixão pela leitura e a conversa fluía com a naturalidade habitual entre bons amigos de longa data.
Algum tempo depois um rapaz de seus trinta anos mais ou menos aproximou-se como se nos conhecesse e simplesmente parou e encarou-nos risonhamente.
-Desculpem, amigos, mas não pude deixar de ouvir um trecho da conversa dos senhores. Falavam justamente de um assunto que deveras me empolga. Sou um apaixonado pela literatura e...
Achei engraçada a maneira do rapaz, expressando-se com certa pompa, mas mantive-me sério, nada a fim de que ele participasse de nossa conversa. Estávamos trocando informações que interessavam apenas aos do ramo de livros e cada um de nós dois poderia fornecer ao outro importantes dicas a serem aproveitadas nos fornecedores o quanto antes.
Pensei em cortar delicadamente o assunto com ele, mas a essa altura aproximou-se um menino de nove ou dez anos e encostou-se nele, com intimidade de filho.
- Esse é meu primogênito. Meu filho único, André, e como eu dizia aos senhores, o que mais quero é que ele puxe pelo pai. Que tenha o mesmo gosto e prazer que eu com a boa literatura.
“Começou bem...Primogênito e filho único ao mesmo tempo...O mais velho e o único...Já dá pra ver que lê muito mesmo...”
- Andei comprando alguns bons livros para ele, mas parece que não há jeito. O negócio dessa meninada é mesmo computador. Digam a ele, senhores, por favor, o quanto é importante na vida da gente a boa e constante leitura dos ”clássico”.
“Dos clássico...”. Eu e o amigo em um papo que nos interessava financeiramente, profissionalmente, e o chatinho desce de pára-quedas no meio da conversa e nos intima a dizer ao menino o que ele tem que ler.
- Meu amigo, eu e meu colega estamos tratando de negócios, aproveitando esse encontro rápido na festa e, sinceramente, acho que seu filho está mais interessado em curtir a festa do que ouvir dois coroas dizendo o que ele deve ler; não é mesmo, garoto?
O menino fez uma cara boa, concordando de imediato comigo e virando-se para voltar à festa, mas o pai o segurou pelo ombro.
- Volte aqui, filhinho, tenho certeza de que estes senhores poderão dar-lhe boas dicas para que você cresça inteligente e preparado como o papai.
Com essa eu quase soltei uma gargalhada das boas. O cara se auto-elogiava perante o filho sem a menor cerimônia! Inteligente e preparado como o papai! Essa foi demais pra minha paciência, mas permaneci quieto.
A mãe surgiu em socorro do filho.
- Venha, filhinho. Venha comer os brigadeiros antes que acabe tudo.
Sem o menino por perto não vi mais motivos para cerimônia. Quis testar o “papai inteligente e preparado”:
- Então o amigo lê muito. Isso é muito bom. Quais os autores que prefere?
- Literatura em geral. Gosto tanto da estrangeira quanto da brasileira, senhores.
- Autor americano, qual o senhor me aconselharia? Sabe que em casa de ferreiro, espeto de pau. Eu e o colega aqui trabalhamos tanto com livros que mal temos tempo de ler.
Depois dessa frase o alívio no semblante dele foi mais do que evidente. Encontrando pela frente dois ignorantes ele não passaria apertos.
- Aconselho a leitura de Mik Vatarí, um autor fabuloso. Gostei por demais de lê-lo e...
O colega o atalhou:
- Não foi esse que escreveu “O Faraó”?
- Exatamente, amigo. Exatamente. Uma obra vibrante, tipo do livro que nos prende a atenção do começo ao fim. Muitíssimo bom mesmo. Recomendo deveras.
A partir daí fomos brincando com ele por um bom tempo. Falamos sobre “Cem Anos de Solidão” de Mário Vargas Llossa, “O Amor nos Tempos do Cólera” , de Jorge Luiz Borges, “As Vinhas da Ira”, de Faulkner, “A Relíquia” , de Rachel de Queiroz”, “Iracema”, de Eça de Queiroz, “Coroa de Ervas”, de Almeida Prado, e todos eles ele nos recomendava enfaticamente, deveras, com certeza que nos agradaria imensamente. Em momento algum percebeu que estávamos nos divertindo com ele. Sua ignorância, sua pose de pai-exemplo, sua arrogância e exibicionismo, não o deixavam perceber isso.
A essa altura o menino voltou e tornou-se a encostar-se no corpo do pai, que o abraçou e disse-lhe, feliz da vida:
- Papai estava aqui explicando algumas coisas sobre literatura a estes senhores, filhinho. É como eu já te disse, Andrézinho, nem todos têm a mesmo oportunidade de estudar que nós tivemos. Você tem que aproveitar enquanto é novinho para aprender e crescer sabendo das coisas. Do mesmo jeito que seu pai.
Eu já estava de saco cheio daquele panacas, mas mesmo assim não me esqueci que não se deve humilhar um pai na frente de seu filho. Deve-se evitar isso tanto quanto possível. Dirigi-me ao menino.
- André, faça-me um favorzão, garoto: vá até lá fora e veja se chegou um rapaz gordinho em um “Escort” prata. Só veja isso para mim e volte pra me dizer.
Mais do que depressa o menino se foi e mais do que depressa eu disse ao pai dele:
- Moço, eu tenho idade para ser seu pai e por isso vou lhe dizer uma coisa: você, com essa sua falsa cultura e genuína ignorância, está mesmo é fazendo mal ao seu filho. Está fazendo com que ele acredite em um ídolo de pés de barro e cabeça de vento. Você nunca leu um só livro em toda sua vida, e eu e meu colega estamos nos divertindo com sua “sabedoria” de orelhada. O autor de “Cem Anos de Solidão” é Gabriel Garcia Marques, de “As Vinhas da Ira” é John Steinbeck, Mika Waltari escreveu “O Egípcio”, “A Relíquia” quem escreveu foi Eça de Queiroz, e assim por diante. Você foi incapaz de acertar um único nome com relação à obra, e recomendou-nos até quem nunca foi escritor. Desse jeito, meu caro jovem, seu filho, dentro de poucos anos, perceberá que o pai só tem pose. Pose daquilo que não é nem nunca foi. E aí, rapaz, adeus respeito. E agora, com licença, que eu e meu amigo vamos tentar recuperar o tempo perdido na conversa.
Achei que depois dessa ele se mandaria dali o quanto antes, mas que nada. Esperou a volta do filho, passou a mão por seus ombros miúdos e foi saindo com ele enquanto dizia para que ouvíssemos:
- Essa gente da antiga, meu filho, é tudo cabeça dura mesmo. Não dá pra ter conversa séria que logo eles vêem com palhaçadas. Já esqueceram o que aprenderam e não aprendem as coisas atual.
Eu e meu colega caímos na gargalhada. O intelectual dizia, ainda por cima, “as coisas atual” !!! Coitadinho do menino. Até que era bem bonzinho.