ADOÇÃO E ABANDONO
(Ao menino K, duas vezes abandonado).
Por Rosidelma Fraga.
Hoje acordei com a história do menino K devolvido ao abrigo da Bahia duas vezes por falta de amor da família biológica e dos pais que o adotaram. O verbo “devolver”, do latim “devolvere”, significa DE (fora), mais “Volvere” (girar, tornar). Porém, na vida do menino K, a palavra tem um significado muito mais amplo fornecido pela etimologia da palavra. Devolver pode ser “Jogar fora”, “rejeitar”, “tornar ao estado inicial do abandono”, “ser insignificante”, “objeto inútil”...
Sobre a palavra abandono eu aprendi profundidades com Manoel de Barros. É preciso dar grandeza ao abandono como no poema “Meu avô”. E para ser grande, é preciso ser inteiro, diz o poeta Ricardo Reis. Assim, o menino K está pertencido ao ato de ampliar a solidão da palavra abandono e do desprezo.
O menino K precisa saber que “a maior riqueza do homem é a sua incompletude”, pois onde há vazio brota uma chama de esperança. O pai que adotou e devolveu K está muito mais pertencido de restos de dor de não ser humano, de não ser gente, de não ser nada, de não ter amor, de ser oco de alma por não ser grande e não ser inteiro.
Assim, ao pai que abandonou o menino K no abrigo depois de ter adotado por quatro anos de convivência, eu deixo uma homenagem com o verso de Manoel de Barros: “Os homens inúteis se guardam no seu próprio abandono”. Abandonar o menino K pode ser uma glória das mais incríveis, pois em algum lugar do mundo o menino K será como Bernardo da Mata, personagem que voou para além do amanhecer.
Ao menino K eu fecho esta obra de adoção com a citação de outros versos sobre o abandono: “O menino que recebera o privilégio do Abandono./Achava que o seu abandono era maior que/O abandono do lugar./Mas o abandono do lugar era maior/Porque continha o primordial”. (BARROS, 2010, p.460). A certeza do lado transcendental da palavra abandono é que K foi um privilegiado pelo ínfimo e sofreu o pertencimento da libertação, ainda que sua dor pelos sentimentos de rejeição e solidão seja incompreendida e rasteira.
Portanto, amanhã será outro dia. K encontrará, em seu berço acolhedor, uma alma muito maior que a minha de poeta. K será adotado por alguém muito mais que especial. K terá motivos para agradecer pela palavra abandono se repetir duas vezes e compreenderá que ser devolvido e jogado fora tem lá suas grandezas inexplicáveis, pois na onda do provérbio: “Deus sempre escreve uma história por linhas tortas”.
Boa Vista-RR, 16 de Fevereiro de 2017.