PRIMEIRA ESCRITA A TINTA
No meu tempo de grupo escolar a coisa era bem diferente do que é hoje. Você aprendia o B A BA e a caligrafia já no primeiro ano de aula; era simplesmente com lápis e só depois de você demonstrar certas habilidades manuais com o dito cujo é que passaria a ter direito de escrever à tinta.
Escrever à tinta exigia uma parafernália louca de apetrechos e uma atenção do capeta do escrevente. Para a escrita à tinta o vivente tinha que estar familiarizado com estes apetrechos todos como, por exemplo: com um pau roliço, em madeira do tamanho de um lápis, sendo mais grosso na parte de baixo e mais pontiagudo na parte de cima, levando na ponta mais grossa a pena de aço – esta pena, em época ainda mais anterior já foi de ganso, galinha ou peru dependendo da disponibilidade da penosa no momento. É claro que não poderia faltar o encantado vidro tinteiro contendo o líquido, azul ou preto e também não se podia dispensar o salvador mata-borrão. O mata-borrão podia ser sofisticado tal qual um berço de balanço ou poderia ser simplesmente uma folha solta.
O escritor à tinta ou de caneta tinteiro, tinha que ter uma expertise a toda prova. Verificava se a pena estava com a abertura melimétricamente suficiente para que a tinta pudesse prazerosamente deslizar pela fresta até a ponta e deitar suave e folgadamente pelo papel ao bel prazer dos movimentos alfabéticos ou numéricos da caneta. Quando vinha a tentação louca de escrever o escrevente mergulhava a pena no vidro tinteiro retirando-a cuidadosamente sem deixar de verificar a quantidade de tinta que ficava disponível na pena. Com um gesto delicado dirigia a pena ao local que iria dar inicio a escrita tendo sempre, na outra mão o mata-borrão para que a cada novo procedimento de mergulho da pena no tinteiro pudesse ao mesmo tempo cobrir a parte escrita com o mata borrão, pressionando-o levemente para que o excesso de tinta fosse delicadamente capturado.
Bem, eu estava no primeiro ano e verifiquei que a professora – a gente não chamava de tia a professora naquela época e educadamente se levantava quando ela entrava na sala – como estava dizendo, ou melhor, escrevendo verifiquei que a professora cobria de elogios meus colegas quando eles apresentavam as tarefas com alguma coisa a mais além do pedido: - A classe tem que seguir o exemplo do Pedrinho, pois a ele foi pedido isto e fez mais aquilo, dizia a professora feliz para a sala. Era para o Pedrinho, Toninho, Mariazinha; todo mundo recebendo elogios e eu ainda virgem deste prazer.
Tenho que fazer alguma coisa para estar na mídia também! Ficava eu matutando o tempo todo.
Todos os santos dias tinha tarefa para ser executada em casa e todos os santificados dias tinha algum colega meu recebendo elogios. Pensei, pensei e acabei por resolver minha angustia e disse para mim mesmo: - Amanhã vou receber estes elogios custe o que custar. Amanhã a sala toda vai saber quem sou eu.
Cheguei em casa todo feliz; cantarolando, assoviando.
- O que se passa com você guri? Estranhou minha mãe.
- Nada não, manhê, respondi para ela colocando meu embornal na mesa, retirando meus cadernos e livros para início da tarefa para o dia seguinte.
- Manhê, cadê aquela caneta e tinteiro que o pai escreve cartas pro vô?
- No armário, filho... Um pouco de silêncio e ela pergunta:
- Mas por que?
- vou fazer minhas tarefas.
- Mas a professora já te ensinou a escrever com caneta? Perguntou ela admirada.
- Sim. Respondi apressadamente.
Peguei a caneta, o tinteiro e o mata borrão e comecei a fazer a tarefa. A tarefa era copiar 5 linhas do livro e nada mais. Treinamento de caligrafia e, com certeza com intuito de memorização da grafia de algumas palavras.
Levei aproximadamente 3 horas para realizar a tarefa, com a ajuda da mãe e do pai. O pai, de semblante fechado criticava a professora: - Este tempo moderno acaba estragando a criançada.
Terminei finalmente e pude dar uma olhadela - só eu é claro, pois o pai e mãe já tinham ido dormir. Fiquei todo orgulhoso de mim e já fui imaginado o grande sucesso do dia seguinte. Todos estariam morrendo de inveja. É claro que pela primeira escrita à tinta todos aqueles borrões e respingos de tinta seriam plenamente desconhecidos. Não fariam diferença alguma.
Esta noite nem dormi; Feito uma betoneira me virei ansioso de um lado para outro na cama maçarocando todo o lençol. Na manhã seguinte apenas levantei. Fui o primeiro a chegar à escola. Estava deveras doido para mostrar a minha obra de arte à professora.
Chegou o grande momento. Entregamos, um a um as tarefas e a professora, como de costume, pegando uma a uma foi tecendo os comentários e elogios.
Pegou a minha... Olhou com um olhar indescritível. Ficou boquiaberta. Mudou de cor. Apoiou-se à mesa para não cair. Transtornada, alucinada gritou para a classe:
- De quem é esta coisa aqui?
Meu Deus! Com todo o trabalho que tive acabei por esquecer de colocar o meu nome. Aí passou um calafrio pela minha espinha e pensei: - Será que a maldita professora vai deixar de me elogiar só porque esqueci de assinar?
Levantei o braço e me coloquei altivamente em pé. – É minha. Soberbamente respondi. Jamais eu perderia este elogio e por alguns segundos fiquei imaginado a professora me levando até a frente da sala dizendo:
- O Mario superou todos vocês e de agora em diante ele será o exemplo para todos da sala. E ao dizer isto me abraçava chorando de emoção quando, de repente me vi voltando à realidade com o berro dela:
- Quem mandou você fazer esta porcaria? Falou isto, rasgando em mil pedaços a minha tão sofrida obra de arte uivando furiosa tal qual um leão com os grãos esmagados entre dois tijolos. A sala toda tremeu por alguns segundos e eu recebi umas pesadas e doídas reguadas na cabeça e ainda de lambuja fiquei de joelho do lado de fora da sala fazendo a mesma tarefa mas agora a lápis.
- Como foi, meu filho? Em casa todos ansiosos queriam saber o resultado de minha arte de escrever a tinta. Até o vizinho veio para conhecer o novo gênio da escrita.
- A professora ficou encantada guardando a escrita pra ela, respondi rapidamente indo furioso me trancar no quarto.