A Segunda Marejada

No domingo, acordei cedinho, o relógio da cabeceira marcava seis e quinze. Saí de casa para fazer uma caminhada em direção à praia. Quando cheguei ao final da avenida, encontrei estruturas metálicas de barraquinhas em torno de um pátio coberto com um grande toldo e um palco montado na lateral. Na frente de tudo isso, os vários tons de azul se fundiam e confundiam a trêmula linha do horizonte evidenciando o colorido das traineiras de pesca. Mais ao longe, como que envoltas em uma cortina, as montanhas completavam o quadro. Desci até a praia. Sobre a areia, garças e gaivotas esperavam os pedaços de peixes jogados pelos pescadores que os limpavam em bancadas improvisadas.

Depois do passeio entre as aves e de um rápido mergulho no canto esquerdo da praia, entrei em um dos restaurantes da orla, totalmente vazio àquela hora, para comprar uma garrafa d’água. Na varanda aberta para o largo, havia um sujeito que parecia sonhar sentado em um banco. Perguntei se haveria algum evento ali. Ele olhou para mim com um ar interrogativo, para então dizer, com a boca subtraída de dentes, que não sabia de nada. Disse que era casado com a irmã do dono do bar, que estava ali de passagem e voltou a olhar o céu com o mesmo olhar sonhador. Em seguida, um senhor, que imaginei ser o dono, apareceu na varanda. Chegou dizendo que se tratava de uma festa de gastronomia tradicional e música, a Segunda Marejada da Vila de Pescadores de Itaipu. Voltei para casa decidida a participar da festa.

Avisei alguns amigos sobre a Marejada e voltei com eles ao local por volta do meio-dia. A festa estava animada. As barraquinhas vendiam bebidas e iguarias tradicionais feitas com peixes frescos e frutos do mar. Passeamos pelas barracas, provamos alguns quitutes, visitamos o Museu de Arqueologia e decidimos almoçar no restaurante do homem meditativo na varanda. Mesmo sendo hora do almoço, o local continuava vazio. Os sinais avisavam o risco de almoçar ali. Talvez por ser dia de festa, decidimos arriscar e dar um voto de confiança àquele restaurante cujo proprietário deveria ser também um pescador. O dono chegou em passos lentos e com cara de poucos amigos. Pedimos sugestões e falamos que costumávamos frequentar os restaurantes da orla, mas que era a primeira vez que entrávamos no restaurante dele. Foi a nossa maneira de pedir que caprichasse na comida e no serviço.

O almoço finalmente servido era muito ruim, o peixe frito estava sem tempero e com excesso de gordura, o pirão ralo tinha gosto de sabão e o molho de raros camarões tinha o sabor de extrato de tomate. O jeito foi pedir mais cerveja para amenizar o paladar da comida. Quando levantei para ir ao único banheiro, me deparei com a porta fechada. No balcão fui avisada por uma senhora mal-encarada que era preciso pegar a chave com ela. Não fiquei surpresa ao ver que o banheiro não estava muito limpo e que não tinha papel. Quando voltei ao balcão para devolver a chave e avisar a falta de papel, fui fulminada com o olhar da mulher, o que me fez pensar que ela seria a esposa do homem absorto sentado na varanda e compreendi o motivo pelo qual ele precisava abstrair-se da vida.

Saímos do restaurante aliviados e decididos a não mais colocar os pés, nem as mãos naquele lugar. De volta a festa, que a esta altura estava cheia de visitantes e moradores da vila, encontramos amigos e conhecidos que se divertiam ouvindo o trio que cantava músicas populares brasileiras e francesas.

As horas passaram entre petiscos e goles de cerveja até que o entardecer manchou o cenário com tons alaranjados e a segunda banda subiu ao palco. Chamava-se “Chico Bóia Jazz Band”. Os músicos e o som eram geniais. Enquanto assistíamos ao segundo show e tentávamos adivinhar o motivo do nome bizarro da banda, um simpático pescador se aproximou com um belo sorriso e se apresentou como Seu Chico Bóia. Bem-humorado, explicou que o nome da banda foi em sua homenagem e que ele, por sua vez, foi assim apelidado por ser descendente de índios. O bóia do seu apelido vinha de Araribóia, o fundador da cidade.

Olhando para o seu Chico Bóia, que aproveitava a ocasião para espalhar simpatia e se divertir, lembrei do seu avesso, o sonhador da varanda, alheio às festas que acontecem a sua frente. Talvez na Terceira Marejada ele possa estar mais atento às oportunidades.