PÉ DE POBRE NÃO TEM TAMANHO

Vamos aos fatos.

Toda terça feira passa aqui pela minha casa um rapaz com idade indefinida, entre trinta e quarenta anos, talvez menos e talvez mais.

A pobreza dá às pessoas uma outra contagem biológica do tempo, diferente de quem leva vida tranquila, dorme e se alimenta com regularidade.

Pois bem.

Esse rapaz apresenta sinais de problemas mentais.

Nada sério que o impeça de trabalhar e recolher reciclarem todos os dias, cada qual em um bairro diferente.

Veste-se com modéstia com roupas não muito limpas.

Cheira a suor, perfume de quem é trabalhador braçal.

E anda descalço.

Nunca o vi, (e já o vejo há muito tempo), com um sapato ou uma sandália no pé.

Minha mulher, (doce pessoa), entrega-lhe a reciclagem e reserva a ele um lanche - leite com algum sanduíche.

Ele bebe, come, agradece e segue em frente.

O ato faz bem a ele e à minha mulher.

Mas alguns dias atrás ela encasquetou que deveria vesti-lo melhor.

Separou cuecas, camisas e calças, bem lavadinha e perfumada.

E, (pasmem!), meias e um par de sapatos.

Quero dizer que o moço, pelo hábito de andar descalço, aparenta ter pé chato e chapado no chão - esparramado, igual ao do quadro do trabalhador rural do pintor Portinari.

Adverti:

"Sapatos não darão certo."

Na terça feira seguinte a minha mulher recebeu o rapaz no portão e convidou-o a entrar em casa.

Levou-o a um banheiro dos fundos, (limpo e muito bem equipado), entregou-lhe um shampoo, um sabonete e uma toalha; e explicou que ele deveria primeiro tomar um banho.

Fiquei observando aqueles gestos com o mesmo interesse que teria se tivesse recebido em minha casa um habitante de Marte.

É amigos - não escondo.

Também tenho minhas dúvidas, meus defeitos e desesperança.

O rapaz tomou um banho demorado, (ele é imberbe, dai não ter feito a barba), e entrei em cena.

Recolhi suas roupas usadas e coloquei num saco para serem lavados e devolvidos na semana seguinte.

Dei a ele a cueca, a calça e a camisa.

Que vestiu com dificuldade; tive de ajudá-lo.

Depois, sentado na varanda minha mulher lhe ofereceu meias e sapatos.

Disse: "Não sei se vai caber".

Para minha surpresa, numa voz que a gente tem dificuldade para compreender, respondeu com uma frase inteligente:

"Pé de pobre não tem tamanho - vai caber sim".

Coube - um pouco folgado - mas coube.

Minha mulher encheu a ponta do calçado com algodão, para ajustá-lo melhor.

Era um sapato preto, bem engraxado.

O rapaz ficou bem apessoado.

Com aquela aparência, pensei eu, ele teria dificuldade em receber doações e reciclagens.

Ele bebeu o leite, comeu o pão com manteiga, pegou a sua reciclagem e foi embora.

Capengando.

Ele não tinha hábito de usar sapato e ficou muito atrapalhado com esta vestimenta tão normal num ser humano civilizado que dava pena.

Tropeçou aqui, balançou ali, e foi-se com passo de bêbado.

"Pé de pobre não tem tamanho";

como quem diz: pobre suporta tudo - até sapato apertado.

Aquilo ficou martelando na minha cabeça.

É costume entre nós, pessoas do mesmo nível social e de educação, a subestimar o próximo, principalmente quando ele é de uma posição social inferior.

Essa maneira de pensar gera sentimentos em nossa pessoa, tais como:

Primeira - nos dá um sentimento de poder (estamos acima do popular);

Segunda - consideramos, (mesmo que inconsciente), que essa pessoa é "inferior";

Terceira - classificamos todos os tais "inferiores" como, analfabetos, preguiçosos, deseducado e culpados pela posição que ocupam na sociedade ("não foi a escola", "é burro", "não se esforçou", etc).

E vira um círculo vicioso.

Creiam em mim.

Não é bem assim.

Cada qual veio de um mundo diferente, foi moldado diferente, teve experiências diferentes, criaram "arquivos" codificados diferentes para comunicarem-se, etc.

Mas somos todos iguais.

Igualdade, fraternidade e amor, são coisas comuns a todos.

Lembro-me sempre, nas horas que vejo injustiças e desigualdade, das palavras da mãe de Homero, herói do primeiro livro que li com muito interesse, e que repasso aos amigos:

"Sempre haverá dor nas coisas.

Mas não é por saber disso que um homem deve desesperar.

O homem bom procurará tirar a dor das coisas.

O homem tolo nem mesmo o notará,

a não ser em si próprio.

E o homem mau aumentará a dor das coisas

e a espalhará aonde quer que vá.

Mas cada homem não tem culpa,

pois o homem mau, não menos que o homem tolo e o homem bom,

não pediu para vir aqui e não veio sozinho,

do nada, e sim de muitos mundos e muitas multidões.

Os maus não sabem que são maus,

e são, portanto, inocentes.

O homem mau deve ser perdoado todos os dias.

Deve ser amado

porque alguma coisa de cada um de nós está no pior homem do mundo

e alguma coisa dele esta em cada um de nós.

Ele e nós somos ele.

Nenhum de nós é separado de qualquer outro.

A prece do camponês é minha prece;

o crime do assassino é o meu crime.”

(Diálogo da mãe com o filho Homero, personagem principal no livro "Comédia humana" – Capitulo XXVI – do escritor e dramaturgo norte-americano William Saroyan, filho de lavradores armênios).

E assim, pensando que fizemos algo bom, mas passageiro, eu e minha mulher nos abraçamos.

Ela disse que me amava e que em quinze dias faríamos "bodas de esmeralda": quarenta anos de casados, mais sete de ajuntados.

Fazer algo bom, (ou aparentemente bom), faz bem a nos mesmos, mais do que a pessoa que o recebe.

Na semana seguinte o rapaz voltou para pegar a reciclagem.

De roupas velhas e pés descalços.

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Obrigado pela leitura - fiquem com Deus.

Araçatuba, 14/02/2015 + 2