Passei o dia todo pensando em uma mulher cujo nome não me lembro e a fisionomia, se a visse hoje, não reconheceria. São memórias, destas, que vêm por acaso e nem sei onde se escondem até que um detalhe qualquer do meu cotidiano as desenterre.
Ela trabalhou em casa por alguns meses. Era minha governanta. Cuidava de mim, mais do que lavava ou limpava. Dispunha à mesa vegetais, verduras, carnes, em pequenas porções separadas, atenta às minhas reações de gosto ou desgosto, como montasse mentalmente um cardápio personalizado. Só para mim. Eu vinha de um casamento desfeito. Ela passava as minhas roupas e sugeria qual delas me cairia melhor em determinados eventos. Alinhava a divisão do meu cabelo, que até hoje não consigo fazer direito sozinha, com uma suavidade nos dedos que furava o meu sempre bloqueio a contatos físicos. Fazia-se discreta ainda mais do que era. Assim que eu acabava de almoçar lavava a louça e saía rapidamente. Não trazia sua vida para dentro da minha, além do que julgava estritamente necessário ao meu conforto. Do que eu sabia, era casada, tinha uma filha e não precisava trabalhar pelo dinheiro. Minha casa era o seu primeiro local de trabalho. Tínhamos a mesma idade, embora ela se achasse, e era, bem mais envelhecida que eu. Dizia que invejava a minha liberdade...
Um dia, recebi telefonema que ela saíra apressada, poucos minutos depois de chegar ao trabalho, mas não liguei o fato à notícia do atropelamento de uma garotinha, na rodovia que passava defronte à piscina do único clube da cidade. A menina, de uns 9 anos de idade, estaria resfriadinha naquela manhã e a mãe a deixara dormindo em casa enquanto saía para trabalhar e que, na ausência da mãe, não resistira à tentação de correr até a piscina. Dera o azar de cruzar com um aprendiz de mecânico que testava a potência de um motor recém consertado.
Durante o velório, na casa que era, realmente, muito melhor que a minha, quem roubou a cena foi o marido, que repetiu, à exaustão e aos berros, que ela matara sua filhinha, que a negligência materna dela matara a sua filhinha, que a curiosidade dela de saber como viviam as mulheres-sem-marido matara a sua filhinha, que o fogo-no-rabo dela matara a sua filhinha. Ela, calada, todo o tempo. Nenhuma reação. Nenhuma lágrima vertida, por dor ou injúria, nenhuma intenção de sair do seu papel de coadjuvante naquele espetáculo de horror. Torpor, seria a palavra, hoje sei, mas naquele dia estranhei uma mãe sem choro em velório de filha.
Voltei à sua casa no dia seguinte e parei a uns metros de onde ela estava e de onde não me via. Não sei se conseguirei descrever com palavras este quadro: uma varanda, de onde eu a via, um espaço entre a varanda e a grade do muro da casa do vizinho, uma mulher com os olhos marejados, naquele gotejamento de lágrima sem força para cair, com a mão esquerda sobre o antebraço direito e a direita sobre a ponta metálica da grade, o sangue que brotava dos dedos e ela não percebia, uma solidão do tamanho do dia seguinte à perda de um filho, e a ausência total até dos curiosos do dia anterior. Ela e sua dor. Do pouco que falei, porque não sabia o que dizer, a única frase de resposta foi a comunicação formal que não mais trabalharia para mim e que o marido mandara avisar que ele dispensava acertos financeiros. Despedi-me com um afago em seu rosto e ela com o costumeiro alinhamento dos meus cabelos. Perdemos contato.
Reencontrei-a anos mais tarde, no terminal rodoviário de Maringá, cidade para a qual eu tinha me mudado. Naquele dia eu estava passando mal, por ter doado sangue. O atordoamento me impediu de gravar imagens claras do nosso reencontro. Só me lembro de seu sorriso largo ao me dizer que se divorciara e também se mudara para Maringá. E do quanto estava feliz por ter me reencontrado. Nem sei o que e como lhe respondi. Falei qualquer coisa como “eu te ligo” e saí, cambaleando, amparada por um sobrinho meu, que também aparecera por ali. Durante o trajeto para casa ainda me lembro de ter-me perguntado como diabos eu ligaria, se nem lhe pedira o número do telefone...
Mulher, hoje sem rosto ou nome, saiba que eu lamento muito não ter podido ser mais do que fui em sua vida. Espero que esteja bem e que o carinho que não lhe dei não lhe tenha faltado, de outras pessoas.