Abriu a janela. Sobre a escrivaninha, um livro embrulhado. Retirou o papel e leu o testemunho de Daniel, jovem ocidental dos anos oitenta.

 
 ...Depressa! Fugir! Que escolher?...Um fliper livre, corro para ele. Depois de jogar por um bom momento, levanto os olhos e descubro quem é meu parceiro: sobre a placa, um diabo verde: rosto enorme, olhos fosfóreos... Vou para outro jogo. Objetivo: atropelar o maior número possível de pedestres ao volante de minha supermáquina. Envolvo-me com o jogo. A cada pedestre atropelado, um som fantástico, anuncia meu triunfo. Ao fundo uma máquina de disco uiva:  ‘Eu mato crianças’. [1]
 
Escutou passos.
Chanana chegava com uma vassoura, rodo e desinfetante.

— Posso entrar?
— Espere um pouco.
Fechou o livro. Guardou-o numa gaveta, e puxou a maçaneta da porta:
— Entre...
— Está atrasada para a escola.
— Não vai arrumar primeiro o quarto?
— Depois que você sair.
Eram sete horas de uma manhã quente no Rio de Janeiro. Gigantesca fila de véiculos para no sinal,   pela fresta da janela semiaberta, ergue-se um polegar.
 — Olá, como vai! Quanto tempo!   
— Pois é. Desde a época na fábrica de celulose em Recife!
— Até mais vê-lo!
— Até mais, Valença!
Vanini apressa-se. Esfrega a esponja, depois puxa a água com um   pequeno rodo. Enxuga os vidros. A mão lhe estende uma  cédula de cinco cruzeiros.
 — Agradecida, seu Paulo.     
O sinal abriu.
Motoristas arrancam os veículos,  simultaneamente. Vanini acena. Ravenala fica triste. Aquela menina deve ser da sua idade. Muitas crianças não estudam porque os mandarins guardam o dinheiro da Educação em seus bolsos rotos. Quebram limites e barreiras, vencem obstáculos, e burlam a Lei. E com asas negras sobrevoam, impunes, o abismo de seus crimes. Maquinam o mal e só o mal fazem ao semelhante — diz o Bom Pastor — por que te glorias de tua malícia, ó infame prepotente. Toquei flauta e não dançaste. Entoei lamentações e não bateste no peito.  
 Se  me fosse dado o poder — disse Jeremias — empunharia minha bandeira contra a corrupção. Faria os corruptos devolverem centavo por centavo, com juros e multa tudo que furtaram. Se assim não o for, remida a culpa, o ladrão continua devendo o dinheiro que subtraiu de suas vítimas, porque cadeia não paga dívida de dinheiro. Paga culpa. Não se devem prender por muito tempo, os corruptos. Apenas o  necessário para repatriar os recursos financeiros que depositaram em paraísos fiscais. Ai do mundo por causa dos escândalos. Eles são inevitáveis. Ai do homem que os causa! Os que praticaram o mal vagarão sob a sombra de seus crimes, como cadáveres insepultos, porque escolheram o caminho da morte. Suas almas atormentadas não encontram refrigério nem repouso.  

 
Até quando, Catilina, abusarás da nossa paciência? Por quanto tempo a tua loucura há de zombar de nós? A que extremos se há de precipitar a tua desenfreada audácia? Nem a guarda do Planalto, nem a ronda noturna da cidade, nem o temor do povo, nem a afluência de todos os homens de bem, nem este local tão bem protegido para a reunião do Senado, nem a expressão do voto destas pessoas, nada disto conseguiu perturbar-te? Não te dás conta que os teus planos foram descobertos? Não vês que a tua conspiração a têm já dominada todos estes que a conhecem? Quem, dentre nós, pensas tu que ignora o que fizeste na noite passada e na precedente, onde estiveste, com quem te encontraste, que decisão tomaste? Oh tempos, oh costumes!
 
Até quando, meu Deus! Até quando?...
***

Adalberto Lima, trecho de Estada sem fim...
 

[1] Daniel – Ange;  o pastor ferido. Librairie Artheme Fayard 1986. Tradução Maria Emir Nogueira; Shalom 1997.