CRÔNICAS – Recordações – 04.02.2017
 
CRÔNICAS – Recordações – 04.02.2017
(Na madrugada)
 
 
Mais uma noite passo acordado sem poder dormir. Não que queira, até preciso e muito. Mas o meu sentido está voltado para a grave seca que atinge a nossa região, ameaçando até mesmo o fornecimento d’água para consumo humano. Quero ter a certeza de que Deus jamais permitiria que isso viesse a acontecer conosco, simples cabras nordestinos, voltados ao trabalho e à humilhação de somente servir de escadas para políticos subir e nos deixar esquecidos, somente se lembrando de que existimos de quatro em quatro anos.

E nessa lenga-lenga, dorme não dorme, veio-me à mente um episódio que ocorrera hoje comigo, reservando-me o direito de não citar nomes, eis que não valeria a pena pra nenhuma das partes.

Comecei a recordar de minha passagem pelo interior brabo da Paraíba, alto sertão, nos idos de 1970, quando dava dor no coração ver os coitados dos agricultores e pecuaristas abandonando suas terras e procurando um lugar que pudesse ao menos conseguir o sustento de suas famílias. Até mesmo homens de recursos em terras e gado se sujeitaram a passar por esse vexame, deixando sua gente à espera de chuvas e de recursos para salvar o que pudesse. Muitos se viram obrigados a vender suas reses magras e famintas, à falta de ração natural, porquanto adquirir alimentação provinda da indústria seria o mesmo que decretar a sua própria falência de uma vez. Causava dor ver caminhões pipa numa correria danada para distribuir o precioso líquido às cidades e povoados causticamente atingidos pelas estiagens.

Eu nem era gerente da agência do Banco do Brasil, mas sim o chefe de serviço da centenária carteira agrícola abarrotada que andava com pedidos e mais pedidos de prorrogação de dívidas a que os mutuários tinham direito, em face das permanentes instruções do banco, assim como pela medida especial tomada pelo governo da revolução, que deu novos prazos de pagamento (oito anos), com carência de até três, em módicas prestações anuais e sucessivas, sendo as primeiras de valor extremamente baixo e suportável. Embutido nessas benesses estava o perdão de débitos de pequenos valores.

Transferido que estava para outra similar, fiz absoluta questão de somente ser desligado após fazer a última operação de alongamento dos débitos, de sorte que pude viajar de maneira tranquila, sabedor de que cumpri todos os meus deveres para com o BB e a comunidade local. Depois disso, rodei este nordeste quase todo, prestando serviços em várias unidades, já como gerente e até mesmo superintendente estadual de operações, nomenclatura enorme, mas na época sem poder algum. Para mim, que sempre me considerei superior ao cargo, aquilo nada representava.

Com base nessa minha passagem por vários municípios, e estando próximo ao carnaval, pensei em passar alguns dias numa cidade dessas, fato que me levou a mandar uma mensagem a uma família dum cliente conhecido e suposto amigo, consultando das possibilidades de passar o reinado de momo, pedindo sua opinião. Foi justamente ontem, na hora de ir pra cama, que recebi a resposta dura e seca de que iriam passar o período numa cidade praiana das Alagoas. Isso me chocou profundamente, até por que não falei que queria me hospedar na casa deles, mesmo porque iria sozinho e poderia me virar num dos modestos hotéis da cidade. Afinal sou e sempre fui modesto, dormi em cama de lona, espécie de maca, quando pequeno, e estou aqui vivinho da silva.

Talvez tenham pensado que eu estava querendo troco pelo tratamento que lhes dei na época difícil. Não, de maneira alguma, e tanto é assim que eu farei a viagem para rever amigos, ex-colegas e parentes, e recordar os tempos que lá passei batendo minha bola no clube que criei, revendo a AABB de antigas peladas e lembrando as jogadas impressionantes que produzia nas saudosas partidas de futebol de salão.

Quem sabe eu não estaria aqui fazendo mau juízo de quem nem tenha pensado nisso? Não é de bom alvitre prejulgar. Mas aqui vai uma opinião de quem viveu praticamente de dois em dois anos numa cidade diferente: Nem você faz amigos e nem seus filhos também. Agora, amigos do gerente aparecem até demais.

Claro que não poderá faltar uma geladinha para lavar o peritônio.

Afinal, recordar é viver.
 
Ansilgus
04/02/2017 21:49 - Walmor Zimerman assim opinou, grato:

É isto poeta das terras do Recife. Nossas reminiscências estão "guardadas" nos arquivo de nossa alma. Umas são boas, outras nem tanto. Admirável a sua vivência, evidenciando já naquela época os transtornos pelas falta do ciclo das chuvas... Segundo afirmações um poço artesiano custa dois mil dólares, até escrevemos uma sucinta crônica sobre menino americano, Ryan, que com oito anos se compadeceu quando ouvir falar através de sua professora que crianças africanas morriam por falta de água tratada... Despertou em a vontade de fazer alguma coisa... Cresceu, criou uma fundação e hoje na África, há mais de 500 poços artesianos feitos pela sua fundação... Talvez isto também pudesse ser feito nas regiões áridas do nordeste, que sofrem muito com a falta de água... De onde viriam os recursos? Segundo o Senador Álvaro Dias, o país gasta anualmente quase a metade arrecada na "rolagem" dos juros para bancar a dívida pública... Isto é preciso mudar, de que forma? Não se gastando mais do que se arrecada... Grato, pelas suas palavras, um abraço amigo nosso e da Meg, e que hoje o sono venha ter "visitar", pois dormir é preciso.
 
04/02/2017 18:45 - Isabel Ramos comentou assim, grato:

É sim preocupante essa grave seca e que no passado, pensamos ser sanada nos dias de hoje... Ledo engano... Mas toda essa preocupação fez nascer um expressivo texto e alguma decepção por ser entendido de uma forma, quando a tua intenção era a de saber como estava a situação por lá. Penso que quando pensamos ter visto tudo, vemos mais alguma coisa. Vai fazer a tua viagem sim e rever o que te dá tanta saudade! Penso que a tempestade dos outros, nunca deve tirar a nossa paz! Simples assim Ansilgus amigo. Boa viagem. Depois compartilha aqui conosco, num expressivo escrito, as tuas lindas lembranças da viagem!!!! Bjsss com o desejo de um fds especial.
 
04/02/2017 17:35 - Cristina Gaspar deixou seu comentário, grato:

Vivo por demais, soltando pipa, língua e mente afiadas e ainda mandando uma geladinha pra lavar o peritônio, se cuide menino, mas, também aproveite a vida, trabalhei em banco por vinte anos, em alguns poucos participava da implantação de agências pioneiras em Tracunhaém (PE), Camaçari (BA) e várias como Santa Bárbara do Tugúrio, Paiva e mais, no interior de Minas Gerais, gerentes ganham um monte de amigos, mas, nunca me iludi de que a recíproca fosse um dia ser verdadeira, entendo você. Abraços fraternos, aproveite seus momentos, fique com Deus, obrigada por suas amáveis palavras. Quanto às minhas, você merece cada uma delas.

05/02/2017 20:02 - 
Miguel Toledo comentou assim, grato:

Ansilgus, linda, bem detalhada e bem argumentada sua crônica sobre a seca do Nordeste. Muito se fala e pouco se faz só conversa de político para ganhar votos e se eleger ou se reeleger. Foi criada a SUDENE, Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste, pela Lei 3.692, de 15 de dezembro de 1959, que no início fez-se alguma coisa e logo esfriou e posteriormente foi extinta. A SUDENE era para atrair indústrias para a região e desenvolver o Nordeste e consequentemente perfurar poços artesianos e resolver em parte a seca que assola essa região tão esquecida pelos governos. Quanto aos amigos de gerentes de bancos é por puro interesse financeiro, meu caro amigo. Parabéns e um fraterno abraço.
 
05/02/2017 19:36 - Aila Brito assim se expressou, grato:

Caro amigo Ansilgus, conheço bem o drama da seca no Nordeste. Trabalho na Secretaria de Agricultura do município, e por lá escuto muitos desabafos de pequenos agropecuários. A seca castiga homens, terras, lavouras e animais e tudo isso provoca um verdadeiro caos. Acompanho de perto o desenrolar dos bancos (BB, BNB), com o intuito de sanar ou reduzir os prejuízos dos agropecuaristas. É, amigo; "não é mole, não"! Mas no tempo "das vacas gordas", são poucos, aqueles que lembram do que passaram; dos nomes de quem os ajudaram... Infelizmente, hoje, é a triste realidade, "pessoas de mentes fracas e corações ingratos". Viaje, curta os verdadeiros amigos e esqueça a pseudo amizade! Grande abraço, mestre. Boa noite!
 
05/02/2017 16:03 - ELIE MATHIAS também comentou, grato:

Recordações com desabafo justo e certo dentre uma prosa que expressa momentos dos mais variados da vida. Paciência Ansilgus o nosso mundo eh cão mesmo , e tudo passa na vida. Fazer o que? Um forte abraço caro amigo.


06/02/2017 10:08 - Maria Mendes assim comentou, grato:

Bom dia nobre poeta. Uma fase da vida que muitos ajudou e com dignidade fez muito bem a sua parte, é maravilhoso se fazer o nosso trabalho com amor e respeito e nesta parte vc o fez, aplausos mil por dividir com seus amigos e leitores uma história de vida com belos exemplos...Aplausos. Receba com carinho um abraço e desejo de uma semana de paz e luz..bjs de luz.
 
06/02/2017 09:44 - Calada Eu comentou assim, grato:

Apesar de ser criada longe do Brasil, minha origem é Nordestina. Quando fui passear na Bahia pela primeira vez, foi bem numa época de muita seca, vi o quanto era difícil plantar e ter algum tipo de criação. Meu Avô tinha uma fazenda de café no Sul da Bahia. Felizmente, não faltava água naquela época, mas hoje já anda faltando. Deus manda chuva, mas os homens - os Políticos - complicam e atrapalham demais a chegada da tecnologia nessas regiões tão secas. O jeito é por em oração. Meu abraço e votos de uma nova semana bem boa!
 
06/02/2017 00:46 - Yeyé Braga participou assim, grato:

Tua excelente crônica, traz para mim um pouco da cultura do Nordeste, que só conheço através de livros e meios de comunicação. É realmente preocupante e muito triste a seca. Dói demais ver o sofrimento das pessoas e dos animais. Não dá para entender o descaso dos políticos com relação a um problema tão sério. Aqui na minha cidade, tivemos um temporal que causou um grande estrago na cidade toda. Espero sinceramente, que tua viagem de carnaval, deixe lindas recordações e que você nos traga essas lembranças em belas crônicas. Que a noite de hoje lhe traga um sono de paz e doces sonhos. Aplausos, Nobre Poeta! Abraço.


06/02/2017 21:10 - Jeane Diogo sempre legal, comentou, grato:

Sei como são as amizades “do cargo" que estivermos ocupando. Trabalhei em saúde publica durante trinta anos, e durante muito tempo fui gerente de UBS, coordenadora de distritos de saúde, etc, etc...Fora do cargo , os pseudos amigos desaparecem. Mas consegui amigos verdadeiros através do meu trabalho em meu consultório particular. Aplausos, muitos aplausos, Poeta. Beijos no coração. Fica com Deus, sempre! Seja feliz.
 
06/02/2017 20:51 - Luamor também prestigiou, grato:
Olá Ansilgus, sua crônica além de bem escrita trouxe uma nostalgia boa. Conheço o Nordeste apenas por passeios, mas sei do que bem do ouço falar as pessoas, pois São Paulo tem muitos nordestinos, e ouvimos um pouquinho aqui outro ali, e formamos a nossa opinião da dura vivência quando se trata da seca, das pessoas e seu trabalho duro, sem água , à passeio tudo é lindo conheço vários estados, que me encantou, como no sul também, nosso país é rico , pena que não temos quem o comande direito, Ansilgus, Te conheço há quase 6 anos e tenho por você uma grande amizade, vá passar o carnaval onde seu coração mandar, e seja feliz, isso é o que importa, nós em primeiro lugar sempre!!! Abraços! Lua.


07/02/2017 23:13 - Fábio Brandão assim se expressou, grato:
 
Realmente preocupante a situação aí na sua região,não possível que não se ache alguma solução até que a chuva venha.Nós que não temos o poder de fazer que alguma providência seja tomada só nos resta nos apegarmos a Deus e as orações para que a chuva chegue o mais rápido possível...Um abraço e felicidades...
 
07/02/2017 22:13 - Uma Mulher Um Poema também comentou, grato:
 
Crônica triste sobre esse caos que afeta o nordeste nesta estiagem, trazendo problemas sérios para os agricultores e para o povo na falta de água. Os governantes deveriam tomar providências para amenizar esta situação, mas só se preocupam com os seus próprios interesses nas urnas. Amizades verdadeiras são poucas, a gente conta nos dedos, estimado amigo! Parabéns pelo brilhante labor! Um carinhoso abraço.
 
07/02/2017 16:25 - Jânia Lopes Martins assim se expressou, grato:
 
Você escreve brilhantemente, Ansilgus. Suas crônicas trazem sua realidade, que muitas vezes se misturam com as dos seus leitores. Show, poeta. Boa tarde.


10/02/2017 23:30 - lumah nos premiou com esse comentário, gratos:
 
Boa noite Ansilgus! São nas madrugadas insones que nos chegam as recordações do passado e as tentativas de busca de soluções aos problemas, que, infelizmente não temos o poder de resolver. Sou do sul, aqui não sofremos o problema das secas, com alguma exceção, mas como Professora que fui, sempre trazia para meus alunos os problemas enfrentados na região Nordeste do País, pobre gente sofredora e esquecida pelos donos do Poder. Minha disciplina era Matemática, mas trabalhava também com alunos do Supletivo à noite, adultos, nessas turmas, os temas eram variados e integrados. Debatidos, analisados. Lembro que levava o nosso Zero Hora para as salas de aula, onde destacávamos notícias para debate. Cumprimento-o pelas belas crônicas que escreve, esta, vivenciou, pela bela carreira em vários Municípios desta sofrida região, onde presenciou tantos problemas. Seus textos, são muito bem construídos, é um grande prazer lê-los. Grata por sua gentil visita. Seu comentário, muito me incentiva a escrever mais e melhor. Grande abraço e procure dormir pela madrugada. O sono nos faz falta. Bom final de semana.

 
ansilgus
Enviado por ansilgus em 04/02/2017
Reeditado em 11/02/2017
Código do texto: T5902226
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