Radiozinho seresteiro
1. Naquele começo de madrugada silenciosa e fria, acabava de ler algumas crônicas do Rubem Braga, quando o rádio do meu vizinho danou-se a tocar. Mas tão alto, tão alto, que me tirou o sono. Não houve chá de Camomila que me fizesse recuperá-lo. 2. Não acontecia por acaso. Vez em quando, o possante rádio do seu Joaquim, mais conhecido como seu Quincas, tornava-se, no silêncio da noite, inconveniente; intolerante; insuportável.
3. Naquele dia, tive uma vontade enorme de abrir minha janela e xingar o rádio do velho Quincas, um resignado funcionário público aposentado, já com quase oitent´ano e com seu cachimbo no canto da boca.
4. Como tive vontade de lançar sobre ele o robusto e variado vocabulário pornográfico que aprender, nos meus tempos de "moleque", no Liceu do Ceará, idos de 1954. Só não o fiz pelas razões que, no final desta crônica, que com saudade escrevo, direi pros sonhores.
5. Descobrira, não sei como, que o rádio do meu provecto vizinho era um Phillips de cinco faixas, alimentado por seis reforçadas Evereadys. Tinha, por isso, um enorme alcance.
6. Possuíra um rádio semelhante. Durante muitos anos, ele fora meu companheiro inseparável, em intermináveis e solitárias noites altas.
Com ele, no meu improvisado criado mudo, atravessei muitas madrugadas ouvindo, entre outras coisas, os quilométricos e atrevidos discursos de um jovem revolucionário chamado Fidel Castro.
7. A Rádio Havana - "transmitindo de Cuba, território livre da América" - chegava à minha república de estudante com extraordinária nitidez. Ficava entusiasmado com o que dizia e pregava o Comandante.
8. Na mesma república, na Rua da Faísca, cá em Salvador, moravam comigo três universitários simpatizantes do Partido Comunista Brasileiro - PCB. Ouvíamos Cuba juntos.
Três jovens talentosos e idealistas. O truculento regime militar reinante na época, idos de 1964-65, apelidava-os de "subversivos". Éramos, todos, muito moços: eles, Fidel e eu.
9. Passo a contar por que não xinguei o rádio do meu vizinho. Porque dele saíam maravilhosas valsas nas vozes de Orlando Silva, Carlos Galhardo e Sílvio Caldas. O rádio do seu Quincas era um rádio seresteiro...
10. Que fiz, então: desliguei o abajur. E esparramado na minha redinha cearense, senti-me ninado por minha mãe. No Phillips do seu Joaquim eu ouvia as mesmas valsinhas, que lá pelos anos 1940, Maria Luiza cantava par´eu dormir... Seria, pois, injusto xingá-lo...
1. Naquele começo de madrugada silenciosa e fria, acabava de ler algumas crônicas do Rubem Braga, quando o rádio do meu vizinho danou-se a tocar. Mas tão alto, tão alto, que me tirou o sono. Não houve chá de Camomila que me fizesse recuperá-lo. 2. Não acontecia por acaso. Vez em quando, o possante rádio do seu Joaquim, mais conhecido como seu Quincas, tornava-se, no silêncio da noite, inconveniente; intolerante; insuportável.
3. Naquele dia, tive uma vontade enorme de abrir minha janela e xingar o rádio do velho Quincas, um resignado funcionário público aposentado, já com quase oitent´ano e com seu cachimbo no canto da boca.
4. Como tive vontade de lançar sobre ele o robusto e variado vocabulário pornográfico que aprender, nos meus tempos de "moleque", no Liceu do Ceará, idos de 1954. Só não o fiz pelas razões que, no final desta crônica, que com saudade escrevo, direi pros sonhores.
5. Descobrira, não sei como, que o rádio do meu provecto vizinho era um Phillips de cinco faixas, alimentado por seis reforçadas Evereadys. Tinha, por isso, um enorme alcance.
6. Possuíra um rádio semelhante. Durante muitos anos, ele fora meu companheiro inseparável, em intermináveis e solitárias noites altas.
Com ele, no meu improvisado criado mudo, atravessei muitas madrugadas ouvindo, entre outras coisas, os quilométricos e atrevidos discursos de um jovem revolucionário chamado Fidel Castro.
7. A Rádio Havana - "transmitindo de Cuba, território livre da América" - chegava à minha república de estudante com extraordinária nitidez. Ficava entusiasmado com o que dizia e pregava o Comandante.
8. Na mesma república, na Rua da Faísca, cá em Salvador, moravam comigo três universitários simpatizantes do Partido Comunista Brasileiro - PCB. Ouvíamos Cuba juntos.
Três jovens talentosos e idealistas. O truculento regime militar reinante na época, idos de 1964-65, apelidava-os de "subversivos". Éramos, todos, muito moços: eles, Fidel e eu.
9. Passo a contar por que não xinguei o rádio do meu vizinho. Porque dele saíam maravilhosas valsas nas vozes de Orlando Silva, Carlos Galhardo e Sílvio Caldas. O rádio do seu Quincas era um rádio seresteiro...
10. Que fiz, então: desliguei o abajur. E esparramado na minha redinha cearense, senti-me ninado por minha mãe. No Phillips do seu Joaquim eu ouvia as mesmas valsinhas, que lá pelos anos 1940, Maria Luiza cantava par´eu dormir... Seria, pois, injusto xingá-lo...