Assim ou ... nem tanto 78
Inverno
Saio da minha mesmice e desta imobilidade cinzenta para o lado de lá do vidro. Há uma chuva que embacia a vida e a mete, anónima, em suspeita neutralidade. Adivinho os sons, sinto o teu andar alagado na berma da rua, o rosto perlado de gotas que correm até à água da valeta. Excluo os outros, figuras opacas, indefinidas, como se, de alma ausente, sem pensamentos, perdessem interesse. Retiro as estridências dos carros de polícia, o desastre que junta gente sob um negro de guarda-chuvas, o brilho acerado e piscante das viaturas de socorro e concentro-me em ti, corpo gentil que se esconde por baixo do casaco espesso, sem outra protecção que não sejam as mãos em pala, o rápido movimento da corrida, a agilidade de evitar outros apressados. Vejo-te a correr para atravessar a rua, adivinho a bolsa aberta, a mão molhada a pesquisar o interior, o molho das chaves, a boca vermelha, o palavrão. Depois, percebo-te a subir a escada já descalça, aligeirada de roupa, entrando na nossa intimidade a escorrer o dia, sorriso aberto, pintura a descer das pálpebras para todos os lugares do rosto. – Que tempo, dizes. E abraço-te, guardo-te na minha nudez quente e estremeço. – Que tempo!