A ironia genial de Ravel
“Há alguma coisa de ironia nesse Bolero”. Foi o que disse Arthur da Távola domingo, 7/8, na TV Senado, referindo-se ao Bolero de Ravel, para mim e para o Arthur, uma obra prima da humanidade. Na análise que fez do Bolero, o escritor carioca iniciou explicando a gradativa inserção dos instrumentos, desde o tarol até o gran finale, com toda a orquestra alternando solo e acompanhamento.
Onde fica a ironia, então? Segundo Arthur, na percepção jazzística que tinha Ravel ao introduzir instrumentos de sopro não tradicionais à orquestra, como forma de estranhar a norma. Por exemplo, o saxofone não era um instrumento usual em sinfonias até a década de 30 do século 20. O som do saxofone, abraçado pelo jazz, entrava num terreno nada afeito à invenção e ao improviso. Talvez a própria figura de Ravel explique essa mudança de atitude no processo criativo da música clássica. Um sujeito franzino de uma moral ilibada e um humor incomum. Humor e moral são distintos em sua realização. A moral atende a uma concepção ideológica de base filosófica. O humor é decorrente de um estado de espírito que pouco se explica por conceitos. Bem, mais isso é teorética. Prefiro falar do Bolero.
Diz-se que um camarada que queria incomodar seu vizinho passava o dia ouvindo repetidamente e a todo volume o Bolero. Se não conseguia irritar, pelo menos educava um pouco seu desafeto.
O fato é que Ravel me conquistou com uma música triste, fúnebre, que eu acho linda e que me proporciona um prazer estético incomensurável, a Pavane.... Coisas da arte. O belo se esconde em lugares só perceptíveis ao coração. Não vou dizer da maior e mais profundamente dolorosa emoção que já senti, embora paradoxalmente e estranhamente grandiosa para o meu espírito, a morte da minha mãe. É uma dor particular que não estendo a outras pessoas.
Pois voltando a Ravel, encontro em suas sinfonias um abrigo para meu deslocado estado de alma. Já ouvi de muitos “amigos” a seguinte frase desabonadora: ele é poeta. E eu, orgulhosamente desabonado, sorria com o coração cheio de poesia. Em diversas situações fui comparado ao destemperado, ao despropositado, ao inconveniente, ao abusado, ao estranho, ao idiota, por pensar e externar uma visão poética de mundo. E não creiam que foi de Platão quem me falou isso. Os interlocutores dessas insidiosas afirmações não eram filósofos e nem fizeram escolas, eram colegas de ofício e de profissão. Então acredito que tem alguma coisa de errada comigo. Não com o mundo. O mundo é regido pela lógica da globalização da economia, sustentada pelo poderio militar e econômico dos Estados Unidos, e pela onda volátil do capital especulativo. As nações, como a nossa, seguem cartilhas e fazem festa com mensalões e presidentes personalistas que se cercam de intelectuais subnutridos intelectualmente e de aspones prontos a defender a pátria dos grupos que se locupletam com a feliz miséria do povão. Isso é ironia.
Lá vou eu agora tentar recuperar o fio da meada do que me propus. Ravel foi tão irônico que compôs uma sinfonia baseada no bolero espanhol, em realização ondular e repetitiva, que se inicia lento e vai explodindo em sonoridade em torno de um mesmo movimento. Assim também foi com Pavane pour une infante défunte que me tornou refém da beleza triste de uma obra que só os gênios sabem ironicamente construir.