Inverno de 93

Chico voltou no final verão de 92, ele havia cortado os cabelos, feito a barba, estava mais magro, mas ele não tinha só mudado fisicamente, algo estava diferente.

Era dezembro, aniversario do Caetano, e fomos para praia logo depois do natal, Eu, Chico, Luiza, Ana e Caetano.

Chico passou a beber mais, mais? Sim bem mais, fumar mais também. Eu sabia o que estava acontecendo, ele não.

Contei sobre Luiza, sobre ela completar todo o vazio que ele havia deixado, sobre ela ser mais que uma alma gêmea, por que minha alma gêmea era ele, e ele sabia.

Falei sobre os shows, sobre os sambas, sobre as brisas, tudo que fiz durante a falta dele, e falei da falta dele também.

Foram longos meses, mas parece ter sido mais difícil para o Chico, eu tinha Luiza agora, e o Chico tinha a mim, e de quem eu era?

Ele tentava disfarçar a felicidade, e meu coração se apertava mais, Chico estava com problemas, mas não me falou qual.

Andamos de barco, fizemos mergulho, fumamos mais um pouco.

Luiza gostou do Chico e o Chico da Luiza, ela entendia nossa ligação e respeitava, eu nunca estive tão completa, eu tinha os dois, eles tinham a mim.

93 estava começando, subimos a serra, já estávamos fazendo planos para o carnaval, e Chico não demonstrou muita animação como antes.

O que a Europa tinha feito com o meu menino?

Estavamos tomando vinho na varanda, eu, Chico e Luiza, ele parecia perturbado, inquieto. Luiza pegou no sono, então perguntei o que me engasgava desde a viagem da praia:

- Vai, conta tudo, que porra é essa? O que esta acontecendo, o que aconteceu lá?

Chico chorou, eu não entendi e chorei também

-Eu não consigo falar, eu não quero falar

Ele foi na bolsa, pegou uns papeis e me entrou, eram relatórios médicos, e radiografias, ressonâncias acho, era um pulmão preto, um borrão

Então eu descobri o que estava acabando com meu menino, o pulmão esquerdo

Do lado do coração, um dementador, um câncer, maligno.

Então chorei mais, por vários dias. Não entendi por que, por que tão novo. Foi uma semana horrível, pra mim e para o Chico continuou sendo horrível. Ele se recusou ao tratamento, recusou as possibilidades, recusou a viver de alguma forma.

Ele estava desistindo

Dos seus sonhos, da escola de musica, dos filhos

Dos nossos filhos

De mim

Ele não parou de fumar, nem eu.

Ele não parou de beber e nem eu também

Ele começou a estudar religião e falou comigo sobre

Eu não estava mais bem, só dormia depois de um vinho

Bom que Luiza me entendia

Passamos o Carnaval em casa, sem bloquinhos desta vez, Chico emagrecera demais.

Junto com a temperatura, Chico caiu

Inverno

20 de junho de 93

Hospital

O câncer tinha se espalhado

Luiza cuidava de mim de uma maneira que não saberei descrever agora

Eu passei a frequentar o hospital depois do trabalho, ele estava fraco, muito debilitado e eu estava perdendo meu melhor amigo aos poucos, ele se recusava a lutar.

Dia 25 de julho de 93, numa ligação, soube que meu passarinho tinha parado de bater asas. Foi como uma areia movediça, o relógio ficou mais lento, quase parando como o seu coração. E assim como os dias, as coisas perderam a cor, eu não sabia como aceitar.

O Inverno de 93 levou meu Chico, como vento leva folhas

Tão rápido como um bater de asas de um beija flor

Não foi sem aviso

Sem aviso foi o buraco que ficou dentro de mim

De não tê-lo trançando meus cabelos, bolando um baseado ou tocando sua gaita

De não vê-lo coçando a barba, tirando o allstar, ou pensando na vida beirando a janela

O câncer levou meu menino, sem precisar lutar

Chico assumiu a perda no primeiro dia que descobriu a doença e saiu do país, nocauteado.

Passou meses na Europa e voltou pra morrer perto de quem amava

Chico não pode me dar o ultimo abraço

Não pudemos dar ultima risada

E não pudemos ter nossos filhos

Ele amou a vida, mas a vida não o amou o suficiente.

Paula Rodrigues (Coka)
Enviado por Paula Rodrigues (Coka) em 16/01/2017
Reeditado em 17/01/2017
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