Por Uma Vida Inteira
Eu tinha apenas três anos de uma existência meio cigana, quando meus pais, que até então arrastavam a única filha pelo mundo, compraram sua primeira casa na periferia da cidade de São Paulo. Há três décadas atrás o lugar era uma área rural em vias de urbanização. Fazendas e chácaras começavam a ser loteadas, surgiam as primeiras casas comerciais, o transporte, o sistema de água e esgoto, a energia elétrica passava a iluminar as primeiras ruas em formação.
O coração de toda aquela transformação parecia estar em um grande pátio, rodeado por altos pinheiros, que ficava do lado esquerdo da minha casa. Era uma empresa de transporte urbano, dali saiam os ônibus que cruzavam a região, ligando os bairros próximos ao centro da cidade.
Entre a minha casa e o pátio da transportadora estava a residência do Sr. Antônio e D. Eunice. Um terreno grande, com duas casas e um amplo salão onde funcionava uma oficina mecânica que realizava trabalhos a pedido da transportadora. Quando conheci aquele casal eu era uma criança, eles já eram casados, tinham cinco filhos e também já eram avós.
O tempo foi passando, os filhos e netos construíram suas casas e se mudaram, mas D. Eunice e Sr. Antônio sempre estiveram ali, supervisionando os trabalhos na oficina – que se manteve pequena, embora nunca tenha deixado de funcionar –, recebendo filhos, netos e bisnetos nos finais de semana. São pessoas simpáticas, educadas, de bom coração, porém discretas, todos eles.
Mas, a discrição, forçosamente, deixou de ocorrer em um certo início de noite. Eu chegava da rua quando me deparei com uma ambulância estacionada ao lado de casa. Sirenes ligadas, luzes vermelhas faiscando sobre o veículo do Resgate, pequena multidão na rua. D. Eunice havia sido atropelada em frente da própria casa. Sr. Antônio, desesperado diante da agonia da companheira, foi logo ao telefone e pediu socorro à família e aos bombeiros. O pobre homem parecia sofrer mais do que a mulher que quebrou uma das pernas em dois lugares.
Ela foi levada ao hospital, onde permaneceu por quase um mês. Ele pareceu envelhecer décadas naqueles poucos dias. Embora idoso, até o acidente conservava os cabelos escuros e uma aparência saudável que, de uma hora para outra, pareceu sugada pelo medo da perda. Sr. Antônio parecia frágil, perdido e tornei-me mais amiga dele naquelas semanas do que em três décadas. Sempre que o via sentado diante da oficina, olhando para o nada, eu perguntava como estava sua esposa. Ele se animava a contar o que havia dito o médico, sua apreensão pela situação da D. Eunice que “não tomava leite, nem água e estava com osteoporose”. A pobre senhora com mais de oitenta anos ficaria em cadeira de rodas, sabe-se lá por quanto tempo, e por pura teimosia, pois ele havia dito tantas vezes para ela que “tomar bastante leite é importante, mas ela sempre dizia que não gostava”.
Naqueles dias fiquei sabendo que aquele casal havia se conhecido a vida inteira. Se casaram quando ela tinha apenas 15 anos e ele 18, e não sabiam o que era viver um sem o outro. Por isso os cabelos do S. Antônio, que foram escuros desde sempre, embranqueceram de saudades antecipadas da companheira de uma vida inteira. Ela retornou ao lar, fraquinha e na cadeira de rodas, ele continuou com os cabelos brancos e o olhar perdido de quem havia se conscientizado da urgência do tempo.