Morre João Bosco, da casa dos Fernandes
Cada um que falasse melhor do que o outro. Na terra deles, Uiraúna, há muitas escolas de música e consequentemente músicos. Contudo, entre os Fernandes, o dom não era o musical, mas o da fluidez das palavras, talento de berço e aperfeiçoado em família. Talvez por essa razão, José Fernandes da Silveira, conhecido por Dedé, não se ufanava de saber tantas palavras, tendo tal dote como uma coisa natural. Quando as falava, nunca as repetia. Suas frases, tais quais vaidosas mulheres, vestiam-se de roupa nova ou só saíam à rua provocantes, quase nuas... Todos os irmãos nada esqueciam, mas a memória de Dedé, o cego, era excepcional, um rico dicionário, com sinônimos e antônimos, e até com crônicas, versos e prosas. Repetidor impecável , à boquinha da noite, sentado na calçada, dos sermões do irmão, o bispo. E, tratando-se de discursos, ninguém superava o Padre Luís Fernandes que mereceu o bispado, mais pelos seus sermões do que pelas suas tidas virtudes; mais pela sua intelectualidade , do que pela fé em possíveis inspirações pentecostais.
João Bosco Fernandes era uma mistura desses prodígios. Deliciava-se em saborear a palavra no beiço, sorrindo, e botando-a pra fora. Por isto, sem esforço, seus lábios loquazes não se fadigavam, diziam-na, numa dicção invejável, num tom de barítono, ponderando a gravidade sonora com o peso do significado. Jamais alguma palavra dita fora do lugar, fora de sentido, nisso, um professor. Guardo o livro Introdução à Literatura Brasileira, de Alceu Amoroso Lima, que ele adotou para suas aulas no Seminário Menor. Era uma aula divertida, misturava humor sertanejo com o português castiço de Camões ou do Os Sertões, de Euclides da Cunha; e de repente, estava ele a declamar O Grande Teatro do Mundo, de Calderón de la Barca, fazendo da sala, teatro, e dele, o protagonista.
Versatilidade com as palavras mostrava-se coisa da família. Entristecia-se, escutando-os, quem pouco soubesse... A mureta do Patamar da Igreja, onde se reuniam ao dia, era substituída, à noite, pela calçada da casa do pai Didi, onde, após o jantar, admiradores ouviam sarcásticas ironias, histórias e Dedé no seu palco. João veio estudar e ensinar em João Pessoa; muito antes o irmão bispo, filósofo, aqui, em Vitória do Espírito Santo, em Campina Grande, alhures, em Roma, imitando o que admirava: A erudição do então cardeal Eugenio Pacelli e, depois, muitos dos saberes, do Papa Pio XII. Choram seus inteligentes parentes como Aécio Pola, José Neumanne e o genial amigo Padre Gervásio Fernandes, que também aprenderam, na terra seca de Uiraúna, versos de Anchieta escritos nas areias molhadas da Praia de Iperoig, em Ubatuba... Já Dedé nem via, nem lia, certamente aprendeu com o vento. Sem mapa, distinguia pelo cheiro ou pelo tato as casas conterrâneas, as ruas e os becos ou, de cor, as metrópoles, até as estrangeiras, aonde pôde viajar o bispo, dileto irmão de João. As palavras se calaram, esses irmãos esvaziaram a pacata Uiraúna, dando-lhe um meditativo silêncio; foram levados pelos ventos do Aracati à cidade lá em cima, para muito além das nuvens, onde a brisa, suave e permanente, não enjoa. Palavras sumiram? Não. Muito nos falam esses vivos, esses mortos.
Cada um que falasse melhor do que o outro. Na terra deles, Uiraúna, há muitas escolas de música e consequentemente músicos. Contudo, entre os Fernandes, o dom não era o musical, mas o da fluidez das palavras, talento de berço e aperfeiçoado em família. Talvez por essa razão, José Fernandes da Silveira, conhecido por Dedé, não se ufanava de saber tantas palavras, tendo tal dote como uma coisa natural. Quando as falava, nunca as repetia. Suas frases, tais quais vaidosas mulheres, vestiam-se de roupa nova ou só saíam à rua provocantes, quase nuas... Todos os irmãos nada esqueciam, mas a memória de Dedé, o cego, era excepcional, um rico dicionário, com sinônimos e antônimos, e até com crônicas, versos e prosas. Repetidor impecável , à boquinha da noite, sentado na calçada, dos sermões do irmão, o bispo. E, tratando-se de discursos, ninguém superava o Padre Luís Fernandes que mereceu o bispado, mais pelos seus sermões do que pelas suas tidas virtudes; mais pela sua intelectualidade , do que pela fé em possíveis inspirações pentecostais.
João Bosco Fernandes era uma mistura desses prodígios. Deliciava-se em saborear a palavra no beiço, sorrindo, e botando-a pra fora. Por isto, sem esforço, seus lábios loquazes não se fadigavam, diziam-na, numa dicção invejável, num tom de barítono, ponderando a gravidade sonora com o peso do significado. Jamais alguma palavra dita fora do lugar, fora de sentido, nisso, um professor. Guardo o livro Introdução à Literatura Brasileira, de Alceu Amoroso Lima, que ele adotou para suas aulas no Seminário Menor. Era uma aula divertida, misturava humor sertanejo com o português castiço de Camões ou do Os Sertões, de Euclides da Cunha; e de repente, estava ele a declamar O Grande Teatro do Mundo, de Calderón de la Barca, fazendo da sala, teatro, e dele, o protagonista.
Versatilidade com as palavras mostrava-se coisa da família. Entristecia-se, escutando-os, quem pouco soubesse... A mureta do Patamar da Igreja, onde se reuniam ao dia, era substituída, à noite, pela calçada da casa do pai Didi, onde, após o jantar, admiradores ouviam sarcásticas ironias, histórias e Dedé no seu palco. João veio estudar e ensinar em João Pessoa; muito antes o irmão bispo, filósofo, aqui, em Vitória do Espírito Santo, em Campina Grande, alhures, em Roma, imitando o que admirava: A erudição do então cardeal Eugenio Pacelli e, depois, muitos dos saberes, do Papa Pio XII. Choram seus inteligentes parentes como Aécio Pola, José Neumanne e o genial amigo Padre Gervásio Fernandes, que também aprenderam, na terra seca de Uiraúna, versos de Anchieta escritos nas areias molhadas da Praia de Iperoig, em Ubatuba... Já Dedé nem via, nem lia, certamente aprendeu com o vento. Sem mapa, distinguia pelo cheiro ou pelo tato as casas conterrâneas, as ruas e os becos ou, de cor, as metrópoles, até as estrangeiras, aonde pôde viajar o bispo, dileto irmão de João. As palavras se calaram, esses irmãos esvaziaram a pacata Uiraúna, dando-lhe um meditativo silêncio; foram levados pelos ventos do Aracati à cidade lá em cima, para muito além das nuvens, onde a brisa, suave e permanente, não enjoa. Palavras sumiram? Não. Muito nos falam esses vivos, esses mortos.