UM AMOR PARA ALÉM DA VIDA

Mário Soares, fundador do Partido Socialista Português, ex-primeiro ministro e ex-presidente da República, dois mandatos cada, obreiro da entrada de Portugal na União Europeia, faleceu no passado dia sete do corrente mês, com noventa e dois anos. O seu funeral decorreu ontem á tarde, dia dez, com honras militares e a presença de vários chefes de estado e outros altos signatários de vários continentes.

Sua esposa, Maria de Jesus Barroso, que era um ano mais nova que ele, tinha falecido há cerca de ano e meio e desde essa data que se notou um grande abatimento físico e intelectual em Mário Soares, sentindo a falta da sua companheira durante sessenta e dois anos.

Foi constituído preso político durante bastante tempo, torturado e viveu exilado em Paris quase até à revolução de 1974. A sua vida foi sempre de luta pela democracia plena e tal concedeu-lhe o nome de “pai da liberdade”.

A cumplicidade que sempre o uniu a Maria de Jesus ajudou-o a superar o afastamento, quer na prisão quer no exílio, contando sempre com o apoio da esposa através de cartas. Abaixo consta uma das missivas que Maria de Jesus dirigiu ao seu marido.

Meu Querido Amor

Senti tanto a tua falta hoje – em quase 20 anos de casados é a primeira vez que passamos separados esta noite. Separados materialmente, claro, porque nunca, nunca deixaste o meu pensamento, meu Querido.

Mas eu, meu Querido, eu que não quero que ninguém me veja senão de olhos enxutos e cheia de coragem, afastei-me um pouco por volta das 10h15, 10h30 e pensei em ti com uma intensidade tal que tinha a impressão de que o meu coração pulsava em todo o meu corpo – era um bater tão forte que a minha cabeça parecia uma caixa-de-ressonância. Pensei em ti com toda a força – passei as minhas mãos ternamente pelos teus cabelos e fechei-te os olhos com um beijo tão cheio do meu Amor – que tu deves ter sentido a minha presença junto de ti. Disseste-me que às 10,30 adormecias e eu quis estar só nesse momento em que pensei que te deitavas e adormecias. Para te acompanhar, para pensar que não estavas tão só nesta noite que foi para nós sempre uma noite de família em que nunca nos separámos. Foi tanta a intensidade com que pensei em ti, sozinha, que quase se tornou palpável a tua presença junto de mim – as pancadas do meu coração eram tão fortes que eu tinha a impressão de que sentia o teu próprio coração bater com o meu. Acredita, meu Amor.

Podem separar-nos, arrancar-te fisicamente de junto de nós como o estão fazendo agora. Mas há uma coisa de que eu estou segura e de que tu podes ter a certeza – eu estarei sempre contigo, meu Querido! Sinto-me de tal modo identificada contigo, todos estes anos em que caminhamos juntos estão tão repassados de Amor, de ternura, de compreensão, que é impossível separarem-me de ti – eu estarei sempre onde tu estiveres. «Não há machado que corte a raiz ao pensamento» diz um poema [de Carlos de Oliveira] e é verdade! O pensamento atravessa as grades mais fortes, não conhece paredes nem montanhas e vai para onde nós quisermos... Ainda! Por isso podem as grades ser fortes, as paredes espessas, as distâncias enormes que eu estarei presente onde estiveres, sobretudo se te sentir só, como agora, injusta e incrivelmente só.

Não sei se conheces uns versos lindos de uma poetisa nossa amiga [Sophia de Mello Breyner Andresen], que diz:

«Para atravessar contigo o deserto do mundo

Para enfrentarmos juntos o temor da morte

Para ver a verdade, para perder o medo

Ao lado dos teus passos caminhei!».

Esses maravilhosos versos dizem bem o que eu te poderei dizer de uma maneira mais desajeitada.

Os beijos mais amigos dos teus Filhos, Pai e Tio Nobre. Abraços, muitos abraços de toda a família e amigos.

Para ti sempre toda a minha ternura mais profunda e os beijos mais carinhosos.

Sempre tua

Maria de Jesus"

Ferreira Estêvão
Enviado por Ferreira Estêvão em 11/01/2017
Reeditado em 11/01/2017
Código do texto: T5879019
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