Canhota e Canhestra
Eu não tenho nada a ver com isso, é a minha mão, essa manipuladora de ideias alheias quem anda escrevendo essas coisas horríveis aí.
Pois é, tenho uma mão esquerda reacionária que, vira e mexe, me vem com uns comentários carregados de preconceitos, ardis que fariam corar até o Maquiavel quando escrevia... o Pequeno Príncipe?! Não, não, esse é outro cara. Quero deixar claro que não sou eu quem tenta fazer com que as pessoas riam com piadas de anão ou coisa do gênero; eu falo é de coisa séria. Nunca contei uma piada de português. Que tive vontade, isso sim, devo confessar, mas nunca, nunca contei!
Só para se ter uma ideia da sua capacidade de manipulação, quando, por exemplo, o Michael Jackson morreu, a maniqueísta aproveitou para, no calor da hora, suscitar uma espécie de “premonição do embranquecimento” pela qual Martin Luther King teria sido acometido antes de iniciar um de seus discursos — aquele que começa com a antológica frase: “I have a dream! ” Segundo a minha mão, esse início de discurso estava originalmente relacionado, não às questões raciais daquela época, mas ao futuro desse astro pop que, após nascer negro, embranqueceria, entrando posteriormente na Ku Klux Kan. Se eu não aborto a tempo essa insanidade, poderia ter atraído ódios internacionais.
Outro dia eu estava no meu quarto lendo o jornal, buscando algum tipo de entretenimento para o fim de semana, quando a canhestra escorregou para o teclado. Fingi que não vi, segurando o jornal com a outra mão, mas acompanhei todo o lance. Ela tentava descredenciar valores éticos, caros para qualquer sociedade, desta vez costurando citações em torno da polêmica “Lei do Gérson” — aquele, do comercial de cigarros da década de setenta. É evidente que eu e minha outra mão não permitimos tal atrocidade.
Vale lembrar que, na época em que esse comercial foi veiculado, o pobre apresentador fora execrado pela sociedade formadora de opinião por sua infeliz frase ao apresentar uma determinada marca de cigarros — se pagarem caixinha, eu digo qual foi a marca: “Leve vantagem você também!” — dizia isso exibindo um tipo de cigarro ligeiramente maior que os demais — essa era a vantagem, fumar mais pagando menos; assim, sugeria o comercial.
Apesar do patrulhamento ideológico daquele período, a minha mão esquerda só não bateu palmas quando assistiu ao comercial porque dependia da minha outra mão que, não achando graça nisso, ou resolveu se enfiar no bolso do meu short, ou fez aquele gesto que fazemos quando insinuamos um “menos; para com isso! ”, essas coisas, não me lembro bem desse detalhe, eu era apenas um simpatizante do socialismo que tentava se insurgir contra o sistema e a minha maldita mão.
Hoje, infelizmente, o Gérson seria aplaudido de pé pela rapaziada, independentemente da atuação dessa apátrida, pois o que não falta é gente dando uma mãozinha nisso aí.
Corporativista, essa manufatureira gostaria mesmo era de instaurar por decreto e, em nome de uma suspeitável democracia, a canhotice mundial. Teríamos, então, uma espécie de mundo de manetas, onde apenas mãos esquerdas manipulariam as coisas à revelia de seus amos.
Condomínios fechados com abridores de latas especiais, trincos de portas especiais, cadernos com brochuras especiais, dentre outras mordomias, isso só pra ficar no âmbito do sonho de consumo material burguês, não fazendo ainda referência a suas ambições ideológicas.
Enfim, essa mão, se desse pé, já teria ido bem longe. Mas Deus não dá asas à cobra ou, no caso em questão, pés a mão!