Precisamos falar do Francisco
Eu conheci o Chico um dia antes da primavera de 91, dia 21, era meu aniversário, a amizade estava para florescer, e meu melhor presente tinha chegado e eu nem dei conta.
Ele era o amigo e um primo de uma amiga minha, havia acabado de chegar da Argentina, e todas estavam ansiosas para conhecer tal menino – pra mim um menino, pois ele estava em seus 20 anos, e eu aqui comemorando 25 – nem dei a atenção do que talvez eu deveria, antes de conhece-lo como deveria, estava muito mais preocupada se a cerveja estava gelada o suficiente.
Setembro de 1991, estávamos ouvindo Cazuza, quando o Gustavo deixava, ele insistia que o rock nacional era um merda, mas o Cazuza não era só rock nacional, era poesia, amor, sentimento puro em melodias.
Havia chovido a semana toda, mas de presente ganhei um sábado de calor, com cerveja gelada na varanda de casa e pessoas do meu coração.
Nossa casa – como eu chamava minha casa, e canto de todos os domingos - na Vila Madalena, ali mesmo na zona oeste, estava impregnada de cigarro, cannabis, cerveja, e wisk barato ao som de Cazuza, passando por Led Zeppelin, Guns in roses, Metallica, e Pear Jam, quando Luiza não inventava de colocar The Beatles ou então The Smiths, meus gostos e da Luiza eram muito iguais, nos éramos muito iguais exceto que ela era pisciana, e fantasiosa, sonhava mais do que deveria.
Caetano e Virginia chegaram com Chico, eu não conhecia o Caetano e nem o Chico, não sabia quem era quem, mas foi fácil descobrir pelas referencias que Virginia deu sobre os meninos:
Caetano era alto atlético, mais moreno, barba feita, postura firme, capricorniano com certeza
Chico, que presumi que chamava Francisco –Nunca em nossas vidas perguntei - , era um pouco mais baixo que Caetano, mas ainda alto, mais magro, mais claro, porem bronzeado, cabelos longos e soltos até o ombro, sem pentear, tinha um dos braços cheio de tatuagens, que fiquei curiosa em saber o que significavam, ele era leonino, eu sabia.
Entraram, fecharam, sentaram, fumaram, beberam. Tinha um baralho, mas nunca fui boa nas cartas, inventei que sabia lê-las.
A noite foi longa, o Chico contou suas historias, da sua caminhada e de seus planos, o menino estava longe o que imaginei, pois era humilde, um tanto quanto tímido e tinha um sotaque lindo.
Ele era baiano, criado no Maranhão, não sabia nadar e sonhava em estudar filosofia, psicologia, sociologia ou botânica, me contou que seu sonho era ter uma escola de musica para crianças carentes, eu perguntei se ele tocava algum instrumento, ele não respondeu, apenas tirou do bolso uma gaita, e começou a assoprar, era a melodia de alguma musica do Scorpinos, não sei eu estava alta demais, ou o menino esta tocando uma musica de ninar. Dormimos todos ali na sala, ao som da gaita do Chico.
Sim, ele era leonino.
O que muitos acham, mais não sabem, é que eu fui apaixonada pelo Chico, mas não apaixonada desta forma, não no sentido sexual, não no sentido carnal, mas no pessoal, assim como Nand Reis pela Cassia Eller na década de 90, paixão de compor musicas para a pessoas e com a pessoa, paixão de querer bem, de querer perto. Hoje vejo quantas musicas poderia ter composto para o Chico tocar em sua gaita.
Ao longo dos dias, fui conhecendo o Chico, como ele ia estar por São Paulo, acabamos incluindo ele nos nossos dias, ele era um doce, assim como melodia dedilhada em vioão com cordas de aço, falava as coisas como se recitasse um poema de Drummond, ou Quintana, nunca penteava os cabelos, e brincava que seu brilho estava nos cabelos desgrenhados.
Ele falava de tudo um pouco, até sobre vida após a morte, como vida em outros planetas, e falava da vida. Seu sonho era ser pai. Mas e a escola de musica? ele tinha muitos sonhos e o Raul Seixas tatuado na perna, gostava de vinho, mas sempre preferia cerveja ou pessoas
Como eu amava o Chico, começamos uma amizade linda, minha mãe achava que íamos namorar, não so ela. Menos a gente.
A ligação que tínhamos, era de energia e amor, de cumplicidade e confiança, o Chico trançava meus cabelos e logo depois fumava um cigarro:
- Rita, que sorte tem o cara que namorar você
- Que cara chico, ta ficando louco?
Ele dava de ombros e tragava de novo
O Chico gostava de pessoas, e eu também, onde estivesse amor, lá estávamos nós, eu e o Chico, ele tentou me ensinar a tocar gaita, e eu o ensinei a cozinhar.
O Chico foi minha alma gêmea, tenho certeza, ele seria o melhor pai dos filhos que não tivemos.
No carnaval de 92 eu estive doente, e todos os dias depois da folia, bêbado ou não, o Chico vinha. Nunca fui cumplice de ninguém, mas o Chico me contava tudo, mesmo sem me dizer nada.
- Rita, sabe o que eu “tava” pensando, você podia ir viajar comigo.
- Por que diz isso?
- Vou para Portugal, no domingo.
O Chico contou que sempre gostou de viajar sozinho, por que estaria me chamando dessa vez?
Ele era engraçado, determinava viagens de ultima hora, sem muitos planos. Ele não precisava trabalhar, era típico burguês de classe media, o tipo de gente que eu não consumava me misturar.
Uma semana depois estava lá, eu chorando desenfreadamente, de coração partido, meu melhor amigo ia me deixar pela primeira vez.
Ele me beijou na testa, e seguiu sem olhar pra trás do que sempre lhe pertenceu: o do mundo.
Leonino com ascendente em Aquário, mais desapegado que o Chico, só meu gato que chamava João, que fugiu também.
Não entendi essa necessidade tão grande de viajar que o Chico tinha, na verdade entendia, ele tinha tempo e dinheiro, lugares incríveis e infinitas possibilidades de ver o mundo, e o mais perto que ele chegou de um amor talvez tenha sido eu.
Em sua primeira viagem Chico tinha deixado muita coisa, e na mesa de casa sua gaita e um bilhete:
“Treine, com amor.
Ch.”