Defensor de bandidos

Lembro-me ainda, eu era menina e ouvia no rádio um som tão distante, bonito, enluarado... Alguém cantava assim: “meu barracão, lá no morro do Salgueiro, tinha o cantar alegre de um viveiro”. A letra conta a história de um abandono de amor. Em outro momento, uma voz cantava assim: ”Barracão de zinco, sem telhado, sem pintura, lá no morro, barracão é bangalô”. As imagens se formavam em minha mente, as imagens de um morro poético, encantador, romântico. O tempo foi seguindo e então ouvia locutores narrando crimes, perseguições, tiroteios. As imagens se formavam em minha mente, os pensamentos se emaranhavam em conflitos e dúvidas. Eu, em uma cidade pequena, capital de um estado pequeno, longe dessa coisa toda. Quando estudante universitária, aquelas situações expostas nos noticiários radiofônicos e mostradas nas cenas da TV em preto e branco (e depois em cores) me punham maluca e totalmente sem entender como deixavam acontecer e crescer as estatísticas do crime. Por que havia polícia e nada acontecia? Como policiais não conseguiam dar conta do serviço? Qual seria o mistério que envolvia um quadro de misérias e sangue, havia até aquele comentário sobre um jornal que, se espremido, faria jorrar o líquido da vida e da morte. O que era dos morros cariocas saiu se espalhando por outros estados, cidades, municípios interioranos, povoados, bairros periféricos. O Brasil se riodejanerizou. Para mais um pouco de seis décadas de idade, o que sinto é um precipício profundíssimo. Tantas cadeias, grandes como cidades, mas, mesmo assim superlotadas de bichos-gente. E quando alguém sente por tantos mortos em chacinas, vêm aqueles que acreditam que outros defendem bandidos. Esquecem-se de que a lei existe para acusar, mas também para defender. Esquecem-se de que bandidos se tornam ainda piores nas condições em que vivem. Esquecem-se de que, para os familiares deles, filho é filho, irmão é irmão, mulher é mulher e sofrem muito, muito mesmo. Por pior que seja um parente criminoso, uma mãe, por exemplo, não perde a capacidade de sofrer pelo filho. Agora se pergunte você onde está o erro, a responsabilidade, ou você acredita mesmo que uma criança nasce marcada para ser criminosa, pergunte-se se essa criança se torna um rapaz ou uma moça e diz para si mesma quero ser bandido ou bandida. Ou quero que a polícia me ache e me fuzile. Olhe para o Brasil, esse país cuja juventude se encontra vestida da pior maneira, que mora da pior maneira, que frequenta bailes de favela, que bebe até cair, que não tem escola, que não tem suporte algum. Olhe! Olhe e pense matematicamente até onde isto se alastrará e o que será da nação, o que será de todos nós envolvidos em algo tão funesto e macabro. Pensemos sobre qual será a solução. Seria matar, matar, matar e matar? Matar todos os marginalizados para que nós tenhamos paz? E se tem paz assim? E se dorme bem imaginando pessoas sendo decapitadas, esquartejadas? E prestam as festas natalinas e outras; e missas e cultos se uma realidade monstruosa cresce ao nosso redor? Seria, então, o caso de tocar fogo em favelas, subúrbios, cadeias e depois ir ao cinema? Seria isto? Eu mesma nem saberia responder a tais perguntas que faço, mas sei que jeito não terá, há toda uma vida nacional de injustiças, de roubo, de enganação do povo, de marginalização orquestrada de jovens, de desmoralização da mulher, da falta de respeito ao ser humano, do roubo de seus direitos de viver dignamente, de dormir em paz. Então, você que é uma fera descomunal, fique aí achando bom e lindo tantas mortes, tanto sangue, “tanto horror perante os céus”. Então, você que é o pior dos bandidos, se autoproclame cidadão de bem, se ache o tal e vá dormir sobre a miséria alheia de maneira fria e criminosa. Vá dormir sem pensar que tanto bandido assim vem de uma fábrica chamada sociedade e que essa sociedade de que falo é porca e mais criminosa do que os decapitados e esquartejados. E fique aí com sua opiniãozinha de Hitler, achando que quem diz coisas como as que aqui digo quer mesmo é defender os bandidos. Todos nós defendemos bandidos sim, os bandidos organizados, votados, escolhidos, aparamentados.