Mais um Crime, mais um Castigo

No portão de ferro da unidade Franco da Rocha, mainha está à porta, sentada num batente com boné azul destoando da roupa verde, e fumando como sempre.

Eu saí meio que feliz por rever a luz do sol.

"O seu amarelo parece ter outro tom aqui de fora".

Tremi por dentro ao rever minha mãe depois de seis meses. Ela me beijou na altura da testa, como sempre o fez, e disse:

_ Tudo bem com você, meu filho? _ Tudo, mainha.

De lá, fomos direto pra casa almoçar. Tudo é como feito sob encomenda pra me receber; até o ônibus cheio.

Chegando ao Areião, bairro do município de Itapevi, meus vizinhos olhavam-me com curiosidade. Enquanto eu caminhava com a terra batida sob havaianas azuis-claras, captava janelas se abrindo e olhares me fitando.

O almoço foi igual ao especial de sempre, como tudo de que se sente falta.

Naquela tarde, joguei bola no campo do bairro. Pude ser goleiro como sempre quisera: a Fundação CASA me deu status, agora eu sou aquele…

Manhã do novo dia, a pé, fui eu e mainha ao fórum de Itapevi. “Preciso assinar minha Liberdade”, esta é assistida. Terei que comparecer por seis meses na Secretaria de Assistência Social e Cidadania para ouvir blá, blá, blá e me livrar dessa.

Só conversa fiada não me moldará em nada. Eu só preciso de um ponto, uma caixa de sapato com um sonho. Nele, eu me realizo.

Em frente a um assistente social aparentando quarenta anos, eu abro o que me convém da minha vida. Ele só é um ser humano; não poderá mudar nada.

Na tarde do último dia de Carnaval fui a São Paulo com meu amigo João de trem. Na estação Júlio Prestes, sentamos e confirmamos:

Vamos Roubar!

Já na Barra Funda, andamos por horas até nos depararmos com um bairro com cara boa. Queríamos a princípio um carro, o dinheiro viria depois.

Eu – 16 anos, moreno claro, corpo sarado sem nunca ter feito academia. Já notaram como tem moleque sarado nas periferias! Ao passo, os playboys se matam puxando ferro. "Eu como de tudo, e não tem um cm do meu corpo sem definição" –. E meu amigo João – loiro, 17 anos, cabelos lisos e escorrendo pelos olhos verdes, roupas sem marcas, mas bem escolhidas –. Portávamos uma arma de plástico e um canivete para nos assegurar.

Um Honda-Civic com uma mulher morena ao volante sai da garagem de uma casa de andar. Aproximamo-nos e anunciamos:

_ Saí daí, Filha-da-Puta!

Ela, sem nem ter tempo pra tremer, já nos via com seu Honda virando a esquina e ouvindo Senhor do Tempo. Curtimos um pouco o carro, ao menos uma sensação; afinal, nós também fazemos parte disso tudo.

Já na Avenida Ibirapuera, sentíamo-nos superpoderosos, esperamos a pessoa certa sair da agência do banco Itaú na altura .... não sei onde escutei que o Itaú é banco de rico.

"Uma velha é que eu quero".

Uma senhora sai, e suas pérolas me enchem os olhos. Vou nela e em segundos é um tapa e uma queda, a bolsa já estava em minha mão. Enquanto meu amigo partia com o carro, eu inspecionava a sua goyard prateada. Numa carteira feminina no mesmo tom da bolsa, catei uns dois mil em reais e três mil em dólares.

"Já tinha visto dólar, mas nuca tantos".

Tínhamos carro e dinheiro; a trindade se completaria com cerveja e quando se tem menos de trinta, tudo acaba em mulher.

Paramos num posto, enchemos o tanque, compramos três caixas de Stella Artois – via os caras tomando essas nos clipes da MTV.

Bebemo-las e dirigimo-lo por horas numa São Paulo cega.

Aquelas eram nossas horas.

Na lanhouse da Rua Augusta, entramos no site MClass, tudo referência dos jornalísticos da TV, a TV nos guiava.

Na página, procuramos por duas putas boas, queríamos mulheres que nunca teríamos, ao contrário sairíamos com uma daquela rua mesmo. Sem nem precisar roubar pra isso.

Mel e Isabelle.

Duas loirinhas. Cara de novinhas. Ligamos e marcamos.

O site da Mel a descreve como loira, 18 aninhos, seios rosados e promete um prazer incomparável.

Meu amigo escolheu a Isabelle. Clara, cabelos castanhos com mechas loiras, mas a palavra que o arrebatou foi "fogosa".

Ô bicho tarado da porra!

Marcamos em frente ao Conjunto Nacional, Avenida Paulista.

Elas relutaram um pouco a ir, mas como falamos o nome de uma à outra ficou mais fácil. Elas já se conheciam.

17h. Na portaria larga daquele shopping duas princesas.

No meio de tanta gente esquisita, não teria como não reconhecê-las.

Eram as putas!

Uma buzinada e no meio da muvuca só seus saltos altos foram ouvidos estalando o chão da Avenida.

Beijinho, beijinhos. Lindinho, gatinhas. E já estávamos longe.

Pedimos um help para escolhermos um motel foda.

A Mel, a que parecia ser mais safa, apresou-se em meter a faca:

_ Vamos ao motel Classe A.

As Stellas rolaram soltas em nossas gargantas e a essa altura já tocava Amy Winehouse no Civic.

Parei o carro na via e pus a Mel ao volante com o caô:

_ Ô gatinha, entra com o carro lá, vai. Quero me sentir domado por você.

Ela caiu mole. Ou se fez de rogada.

Eu e meu amigo nos espremíamos embaixo dos bonés, enquanto a vagabunda pedia a chave da suíte presidencial.

Duas horas de sexo e saímos com a Mel dirigindo, eu no passageiro e Isabelle trocando carícias com João no banco de trás.

Olhava aquilo e ria contido – ele tinha um canivete no bolso.

“Como esse otário se entrega assim por um chá-de-buceta”!

Fiz que não estava ali, mas percebi o João bulindo no celular da Isabelle. Não quis perguntar, mas temi por meu amigo: será que ele acha que essa puta vai procurá-lo sem sua carteira aberta?

Bem, na autoestrada fizemos a troca. My Chemical Romance gritava I Don’t Love You e os dois não paravam de se beijar.

Eu já nem olhava praquele loirão ao meu lado, já estava de olho na mulata que a margeava no MClass.

Ainda tinha sobrado muita grana. Dividindo o dinheiro dava uns três mil pra cada. O osso seria trocar aqueles dólares.

Deixamos as vagabas no flat onde elas moram nos Jardins e seguimos de volta até onde tudo começou.

O carro foi deixado por lá mesmo. Não sou otário! Sei que aquela porra tem rastreador ou que blitz na estrada estariam avisadas dum roubo de seu modelo e placa.

Voltamos pra casa de trem e com uma bolada no bolso. Dali, já estávamos salvos.

Ia trocar aquelas verdinhas, dá uma parte a minha velha e torrar o resto com roupas, breja e mais puta.

Na manhã do dia seguinte, fui conferir o saco do Supermercado SAN dentro de uma mochila onde guardei a grana.

Naquela manhã não ia comer salsicha, pão dormido e café requentado. Peguei cem conto e fui ao Mac do centro. Pedi um Magnificus com batata grande, suco de uva quinhentos ml e duas tortas de banana.

O shopping logo em frente estava me chamando. Entrei, e agora olhava as lojas com outros olhos. Não estava com toda grana no bolso, mas abria-se um portal de possibilidades. Ando firme e seguro, o dinheiro me garante agora.

No primeiro andar fui fazer algo que dormi ansioso por fazer: entrar numa lanhouse e postar aquela foda no site GPguia.

Paguei duas horas e www.gpguia.net. Postei meu TD – Test drive de puta: ...

Saí de lá com a sensação que agora sim eu gozei. Pra que pegar uma gata daquela num puta motel se não contar pra ninguém!

O novelo de mentiras se enrolou de tal forma que nem eu sabia mais se o que eu fiz era errado ou se tudo é aceitável.

A atendente do motel desconfiou daqueles púberes naquele carro da hora e pagando a melhor suíte com dólares. Sendo que a Mel tem um sotaque de nordestina da moléstia.

Resultado: ela anotou a placa do carro e ligou pra polícia.

O carro foi achado rápido, mas o que eu não esperava era que o investigador fosse leitor daquela miséria de site.

Meu TD estava logo na página principal e cheio de coments.

O comandante Marujo, assim que pôs os olhos no meu relato casou-o com o roubo na Barra-funda.

O filha-da-mãe ligou pras putas marcando um programa.

Chegando lá já foi dando carteirada. Uns cinco policiais fardados entraram no flat.

O interrogatório nem foi longo, as meninas estavam muito assustadas e choravam muito.

Dez minutos e o celular que o João salvou no da Isabelle estava no caderninho de anotações do Comandante.

Daí a chegarem até a gente foi um pulo.

Três dias de celular grampeado e eu ligando-lhe direto pra combinarmos onde íamos trocar os dólares.

Fomos pegos em casa no quarto dia.

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Dia 24 de junho de 2010, como um amigo de infância – André – dizia "dia internacional dos viados". Eu e minha mãe chegamos ao prédio da SASC onde teríamos nosso primeiro atendimento, a chamada IM – Interpretação de Medida.

Um jovem sorridente demais para a função nos recebeu e indicou a sala onde se realizará o grupo de pais e responsáveis daquele mês. Mas não sem antes me barrar a entrada:

_ Hoje é só para os responsáveis, Rogiério.

Fiquei sentado numa cadeira plástica vermelha ligada a outras por um ferro preto.

A sala de reunião estava com as cadeiras dispostas em meia-lua. Completam o ambiente um flip-sharp armado e a mesa de lanche posta com pães franceses fatiados e um patê nojento nuns potes plásticos, um ventilador barulhento de base alta e todo o som das muitas mães e uns pais pingados vazavam pela abertura de ventilação que margeava o teto.

Fiquei sentado na sala de espera e observando todas as mães chegarem. Umas eu conhecia de vista, outras achava que conhecia. Eram todas caricaturas das que podiam estar ali.

Os analistas técnicos percorrem o corredor como um esquadrão em fila indiana. O assistente social de óculos, cabelo em mola, calça de sarja desgasta, camisa de botão azul e sobretudo de lã cinza; a assistente social gordinha de terno preto e sapato alto barulhento e por último o assistente social caucasiano magrinho e trajando esporte.

_ Boa tarde, estamos aqui para mais uma reunião com os responsáveis dos adolescentes atendidos pelo projeto.

"Mais uma?!, para mim esta é a reunião, não mais uma..."

Enquanto eu lhe assistia por uma frestinha, perdido em pensamentos, olhando e não vendo nada, tudo longe e seu abrir de braços retomou minha atenção. Levantou-os levemente parecendo preparar-se pra voar. Minha cabeça ouvia gestos e sons – como uma coisa única – assentindo, ela dançava para cima e para baixo do eixo do pescoço. Era uma força naquelas palavras soltas que parecia só haver-nos na sala.

"Até quando esse sentimento de tudo posso durará?"

Somos apenas humanos! É isso que penso quando estamos todos numa sala tentando resolver a vida alheia. Quanto tempo falta para o fim do mês? Dívidas, futuro e vida motivam a fácil percepção das reais necessidades. Somos todos iguais, eles – os do Crime – são quem têm coragem. Buscam tirar-lhes as dúvidas e não só vivem como nós – os do Castigo.

É tudo uma exceção. Momentos vãos, ou, ao passo, completos. Nenhum quer ser o que evoca a dor. Em verdade, eu sofro mesmo é por ti. Não sou besta. Não quero me machucar. Não sou pior que qualquer um de nós. Sou só um humano e não me conformo com isso. A dor que te provoco já é o meu castigo, mas eu quero é mais. Eu quero é contigo. Não vês que eu só faço isso pra lhe testar.

A quantas anda o seu amor? Todos já me abandoaram. Você irá aguentar? Até quando? Dei-me a certeza que eu te dou o que quiseres. Nada me parará. Nada é importante pra mim. Só você.

Não vês que me machuco pra te ferir! Vem você aqui e mostra-me o quanto eu sou importante pra ti. Sozinho eu não consigo, mas só estou.

Fico rindo desse monte de gente reunida para me pseudo-salvar, quando que se só uma realmente quisesse, conseguiria e pra sempre.

Não desista de mim. Olha! Os castigos não são sentidos aqui, voltam todos praí.

Eu preciso de tudo: disciplina, limites, respeito e de ti. Mais-te.

Desde criança é assim, ou mostras que nada me fará deixar de ser o seu menino, ou morreremos assim: humanos, abandonados e testando abandono.

Minha mãe me dá um beijo na testa, segura na minha mão e me carrega até em casa, sem proferir uma só palavra.

Em minha mente eu quero fazer tudo, na dela eu acho que também.

Ligadas por fios dementes, mesquinhamente, definem nossa sorte.

Ela sabe o que tem que fazer. E não faz.

Eu sei do que preciso. E não peço.

Somos apenas humanos. Demasiados, "demasiadamente humanos".

Somos tão só e somente, que somos quase nada.

Os dias se sucederam, e nada mudou.