MEU VELHO CASACO DE PELE

No último sábado, dia 28, íamos andando à beira de um lindo lago em São Francisco, o Lago São Bernardo, a quarenta quilômetros daqui, um pulinho. Com uma temperatura de quatro graus negativos, lindo demais, uma iluminação nas águas e em árvores retorcidas e um pessegueiro em flor.

Eram oito da noite e estávamos indo em direção a um hotel pintado de branco , arquitetura alemã com aqueles telhados de ângulos achatados, para assistir a um tal espetáculo artístico que apresentava coreografias dentro de uma temática ambientalista, com muitos figurantes e até um grupo de cavaleiros que encenaram a chegada dos brancos em uma aldeia indígena. Algo espetacular.

Depois voltamos à cabana que é uma espécie de pousada incrível, cujo dono é um artista plástico que tem várias esculturas na cidade e é diretor do museu de arte da PUC em Porto Alegre. Ela é algo que só poderia mesmo ter sido projetada por um artista e não tem nenhum conforto para o frio além de uma lareira no segundo piso e de um fogão à lenha na cozinha. Então permanecemos por muito tempo ao redor dessas duas possibilidades de obter calor, muito vinho e risadas, até o sono bater mesmo e termos coragem de ir pra cama gelada. Mas nós aqui do sul, já estamos acostumados a passar frio, mesmo que possamos contar com ar condicionado. Tudo é uma questão de modo de encarar. Pra estar naquele lugar não podia haver hora mais especial. A lua cheia clareava os pinheiros seculares, o céu era tão claro que parecia transparente e aquela cidade onde tudo parece estar a umas três décadas atrás, mexe muito com minha subjetividade. Desentoca lembranças, sensações de mim mesma.

´São Chico é a minha Pasárgada. Quando estou lá sempre estou feliz, como quando vimos a neve começar a cair em setembro do ano passado e corremos feito criança jogando neve uns nos outros

Éramos um grupo de onze pessoas, minha irmã, seu marido, outro casal com uma menina, eu, três filhos, genro e um sobrinho que anda se aquerenciando muito em minha casa.

Eu tenho um velho casaco de peles, que é relíquia pois herança e já tem mais de quinze anos. Este foi o maior frio que ele já enfrentou. Quatro graus negativos. Mas cumpriu sua função de forma totalmente satisfatória. Ele já esteve na Argentina num mês de julho, me viu tomar vinho num bar típico que não era "pra turista" e onde, por indicação das pessoas que me acompanhavam enquanto eu estava afastada da mesa, me entregaram o microfone pra cantar e felizmente eu sabia quase toda a letra da música que francamente não sei quem escolheu. Foi aquela do Tom Jobim, Corcovado. Então, eu já cantei em Buenos Aires, isto parece mesmo um acontecimento. E os guris adoram me tirar e ficam dizendo que eu me acho. Mas adoram estar comigo, eu sei.

E voltando à cabana, dormi no quarto piso.Se olharmos pelo lado de fora e virmos aquele telhado ir afinando, não vamos acreditar que exista um quarto naquele triângulo estreito. E tem. Cabem duas camas de solteiro, ou uma de casal. E são na verdade três quartos. E durante a noite, eu me senti quase criança, naquele quartinho de brinquedo e então percebi que algo de mim que eu nem lembrava mais parece estar sendo resgatado. O corpo estava quente sob muitas cobertas, mas o rosto parecia congelar e isso me remetia mesmo à infância e a invernos perdidos na neblina do tempo, onde eu lembro de estar com mãos e nariz gelados e de um dia ganhar um acolchoado novo de meu pai, ele mesmo fora comprar num dos dois armarinhos da cidade, quando minha mãe, provavelmente, estaria muito ocupada com um novo bebê. Era revestido de um cetim com a cores diferentes em cada face. Ele vai me aquecer pra sempre, só de lembrar.

E a menininha, ao subir até o último piso, disse inesperadamente: -Pai, como eu to feliz aqui! E eu sozinha naquela cama estreita pude ser eu de outros tempos e também estava feliz ali, essa felicidade de criança que nunca morre dentro de nós , está só à espera de que lhe demos uma chance.

E você estava lá, mesmo sem saber, dormia em meus pensamentos, era uma lembrança de uma escrita que eu interpreto como você , mas era o que eu tinha, o que tenho e que não gostaria de perder, vai lá saber por que!

tania orsi vargas
Enviado por tania orsi vargas em 31/07/2007
Reeditado em 06/04/2008
Código do texto: T586521
Classificação de conteúdo: seguro