Corro até a gaveta onde se encontram as folhas sobre as quais escrevo agora.
Ao sentar-me aqui, volto meu corpo e ainda os vejo, já no outro quarteirão, às minhas costas.
Que estranho séquito...que gente maravilhosa este meu povo brasileiro...
Lanço mão da minha mais autêntica maneira de detalhar fatos.
E, nesta situação, são tantos que suponho não rete-los de maneira absoluta.
Eu havia descascado três quilos de camarões, graúdos, que prefiro, ainda que sejam mais caros. Diminuo a quota, se for o caso, mas estimo a qualidade. O Sr. Antônio é o meu fornecedor e amigo, aqui em Caiobá. Telefono para ele, do meu celular ao seu, sempre dizendo a pouca e mesma criativa pouco frase: É neste telefone que falo com o Sr. Antônio, que vende os camarões graúdos? E sempre, quem me atende diz: “Sim, Dona Isabel, aqui é o Antônio dos camarões graúdos, tudo bem com a senhora? Conheci sua voz...”
Pronto. Feito tal contato, fica pré-estabelecido que terei muita atividade nas próximas horas. São enormes, sem dúvida, os camarões, mas ele somente os vende com casca...
Lavei as mãos que, ainda assim, cheiram camarões. Mas logo em seguida vou tomar banho e prefiro sentar-me à beira da piscina, tomando uma cervejinha de lata, condição perfeita para sentir-me em férias, feliz, aqui na praia, no meu amado apartamento da Manoel Paranhos.
O Dia de Finados surpreendeu. Não chove, o que sempre ocorre neste dia do ano, e o mormaço chega a queimar.
Sentei-me, mais ou menos sem perspectivas, como me sinto sempre que estou aqui.
E isto é muito bom.
Por isto descanso tanto.
E também, pelo mesmo motivo, é bom que não sejam muitos os dias deste lazer. A falta da perspectiva para viver não pode se alongar jamais. Uns poucos dias, no máximo quinze.
E volta-se aos projetos, enquanto durar a vida.
Desta vez, são apenas quatro dias, o que torna mais valioso este momento.
***********************************************
Eram pessoas muito interessantes e juntas, formavam um grupo digo de menção para gente que se interesse por gente.
Estou situada neste rol, com acentuada demonstração de levar muito a sério o que analiso.
Inicialmente, o que chamou a minha atenção foram os dois cachorros. Um preto, bonito, com cauda de farta pelagem, de médio porte. O outro, em lastimável demonstração dos contrários, pequenino, com alguma doença que lhe consumiu o que deveria ter sido a totalidade de seus pelos, com a aparência avermelhada e feia, como se estivesse em carne viva, origem de presumível doença generalizada.
Ambos, o preto e este, como todos os cães, à volta dos donos, em expressiva demonstração de alegria, abanando a cauda aos objetos de sua afetividade. Principalmente, o preto, quanto ao abanar da cauda. O pequenino mexia um minúsculo rabicho, de má qualidade, tão pouco expressivo, uma lástima, também afetado pela doença
Ali, para lá e para cá, iam e vinham em torno aos donos, hipotecando-lhes afeto e zelo.
Eu prestava atenção nos animais. De repente, detive-me a analisar as pessoas que já tinha visto. Ver é bastante diferente de avaliar, de analisar...
E esta visão, tão análise, subitamente, levou-me a um sentimento de certa agonia. Inesperadamente fiquei aflita pelo que via. E ainda que me afligisse, o que eu via era muito bonito.
Talvez agora, que já se foram, é possível que alguns detalhes me escapem, o que será uma pena.
Como disse, passei da análise dos animais a avaliação das pessoas.
O grupo era formado por cinco delas, sendo duas mulheres, adultas.
Uma delas negra, bem magra e muito bem-feita de corpo. Sobre os cabelos crespos, típicos nesta cor de raça humana, um boné branco, que surpreendia pela brancura, com uns dizeres que não consegui ler, de onde eu estava, no alto, aqui em minha área.
Ela vestia camiseta, limpíssima, que em seu corpo esguio, alcançava-lhe mais que o meio do corpo, quase aos joelhos. Não era muito alta. Usava uma calça das que se usa para a prática da ginástica, ressaltando ainda mais as suas pernas magras e, nos pés, sandálias havaianas.
Durante todo o tempo em que observei este maravilhoso grupo, o predomínio do sorriso desta moça me impressionou.
A outra mulher, bem gordinha, também vestindo camiseta, usava um bermudão, tênis, bastante envelhecido e seu cabelos, bonitos, porém maltratados, estavam presos por um elástico ou não sei o que, impossível de divisar.
As crianças, que inicialmente eu vi compondo o grupo, eram três meninas. Duas, quase chegando à adolescência e a outra, menina ainda. Certamente, a mais moreninha seria filha da jovem negra. As outras duas, parecendo irmãs, demonstravam uma relação de filhas e mãe, com a jovem mulher mais gorda.
Esta gente conterrânea circundava um estranho meio de transporte. Uma bicicleta, ou, ao menos parecia, com três rodas, não sei de que modo adaptadas, como se fosse um triciclo infantil.
Observei que era ao contrário, quase sempre veículos que possuem três rodas, tem uma à frente e duas na parte de trás, o que de certo modo facilita o equilíbrio.
Aquele meio de transporte da brava gente brasileira era ao contrário. As duas rodas eram na frente. Na roda de trás, sobre a qual ficava o assento usado pela mulher morena, era a extensão da coragem e da bravura que dirigia toda a parafernália ali amontoada.
Sim, o impulso dado não poderia ser oriundo apenas daquela frágil mulher...Deus se manifesta. Sempre!
Voltando ao esquisito, extemporâneo e invulgar veículo, como mencionei, sobre as duas rodas da frente alguém engenhoso elaborou incrível tecnologia, misto de suporte, caixote, ripas, onde, pouco a pouco, se ia acomodando tudo o que ali depositava aquela gente operosa.
Elas pararam o único, invulgar veículo de transporte, mais ou menos em frente a entrada do nosso edifício e foram colher a matéria prima do seu sustento de vida no edifício ao lado.
Ali existe um nicho de uns dois metros quadrados, onde é depositado todo o lixo de todas os apartamentos, em número elevado, até que o caminhão da Prefeitura o recolha.
O veículo permaneceu no meio da rua, onde o haviam largado. Os cachorros, o saudável e o não saudável sacudiam, respectivamente, a linda cauda preta e o pouco expressivo e doentio rabicho.
As mulheres e as meninas, durante uns vinte minutos, exerceram uma atividade digna de ser mencionada. Enquanto as mais jovens iam, para colocar no veículo e vinham, para buscar novas coisas, e iam e vinham, as mulheres separavam objetos, garrafas plásticas, caixas de papelão, pequenas, grandes, médias ou mínimas, jornais, em pilhas absurdas, latas e uma ou outra coisa que eu não divisava ou não sabia o que seria.
Por vezes detinham-se a avaliar algum objeto, reuniam-se em roda, confabulavam e davam palpites, umas e outras. Eu não conseguia escutar. Assim que o interesse se dissolvia, voltavam ao trabalho, tão rápidas quanto atentas ao que faziam.
E o veículo lá, no meio da rua, digno e respeitado pelos automóveis que transitavam nesta rua central do bairro de Caiobá. Carros e motos desviavam-lhe. À sua volta, os cães, igualmente dignos, propriedade daquele grupo de pessoas, cumprindo o seu papel de lealdade.
Em certo momento, o responsável pela vigilância do prédio a frente do nosso, apareceu com um enorme saco, aparentemente cheio de roupas. Entregou a uma das meninas, a maior, que atravessara a rua correndo para apanhá-lo, dizendo-lhe alguma coisa que não ouvi.
Ouvi, porém, a jovem mulher gordinha falar com uma voz impregnada de riso:
“Tem roupa para gorda”?
Todas elas riram e se disseram frases que não entendi. Uma das meninas, outra que não a que apanhara o presente, permaneceu segurando o saco, como se este fosse um tesouro.
O veículo ia ficando saturado. Um ou outro utensílio, garrafa, lata, já não ficava retido entre o atulhado nível de retenção daqueles objetos, causando incômodos às duas meninas, que procuravam segura-los com as próprias mãos ou apanhá-los na calçada.
E sempre rindo, assim, assim, tão adequadas a própria realidade...
Algumas pessoas saíram do nosso edifício, descendo a pequena escada e ali encontraram com amigos ou parentes, a julgar por suas demonstrações afetivas, bastante evidenciadas e eufóricas.
Ali, muito próximas, aquelas cinco pessoas sobre as quais escrevo e detenho a minha análise, continuaram sua tarefa, sem demonstrar nenhuma revolta por aquele grupo recém-formado que conversava, alheio, totalmente alheio ao seu trabalho, o desta laboriosa e brava gente brasileira.
Com seus olhares, porém, observavam. E escutavam, atentas.
A recíproca inexistiu.
O novo grupo nem pareceu notar que ali havia mais gente.
Nem as meninas, nem as mulheres. Ou os cachorros... O de linda cauda ou o de rabo precário.
Muitos menos prestavam atenção àquela fenomenal engenhoca, ali, no meio da rua, repleta de lixo.
Para uns.
Para outros, de matéria prima de vida...
Para mim, encanto absoluto!
De novo, na rua, só as vozes que eu não escutava e a labuta daquela gente, um pouco arrefecida com a saturação do seu maravilhoso meio de transporte.
Inesperadamente, da direita do meu prédio surgem dois meninos pequenos, um loiro, outro moreninho, semelhante à menina morena, com fisionomia também parecida com a da mulher do riso fácil.
Eles vinham muito alvoroçados, trazendo também garrafas plásticas vazias, latinhas de cerveja ou refrigerantes e pelo que percebi, muitos jornais. Um pouco mais atrás, uma senhora bem gorda, de mais idade, carregava um recipiente grande de lixo, dos que se usa para guardar roupa suja ou roupa limpa. Ou, realmente para guardar lixo, em casas de famílias maiores.
Juntou-se ao grupo, rindo e aparentemente feliz com o que tinha entre os braços e que mal conseguia sustentar.
A agitação intensificou-se, novamente. Um reiterar de buliçoso alvoroço.
Outra vez ocorreram tentativas de acomodar o que os meninos haviam arrecadado e outra vez coisas caíram e foram arrumadas.
O enorme recipiente de lixo continuava ali, no mesmo lugar, com dificuldade seguro pela senhora que chegara, entre os seus braços gordos e flácidos pela ação de um tempo que não diminuíra, entretanto, a sua alegria.
E grande bem-estar, pelo que aparentava, frente a vida.
Enfim dispuseram-se, todos, a ir embora.
A mulher morena, de rizo fácil, magrinha e ágil, como se entre todos houvesse um acordo tácito, ágil, pulou para o selim e iniciou a dirigir o seu meio de transporte, não sem um certo sacrifício.
Lixo, Entulho, Criatividade, Dignidade e Esperança passaram a mover-se.
À sua volta, o cortejo lindo, qual séqüito, acompanhava, caminhando. Os dois meninos, a três meninas, a jovens mulheres e a mulher não jovem, de braços flácidos e riso atuante.
Passaram ali do meu lado e ainda me estiquei para vê-los. Eu os perdi, de vista... apenas física!
O respeito que tenho pelos carrinheiros é algo mais profundo do que apenas o registro que o meu olho retém sobre o trabalho que elaboram.
Vi além, sempre, SEMPRE, EU muito além. Trata-se do respeito e da estima que tenho por quem encontra nos dejetos do alheio uma fonte digna de sobrevivência.
Ao sentar-me aqui, volto meu corpo e ainda os vejo, já no outro quarteirão, às minhas costas.
Que estranho séquito...que gente maravilhosa este meu povo brasileiro...
Lanço mão da minha mais autêntica maneira de detalhar fatos.
E, nesta situação, são tantos que suponho não rete-los de maneira absoluta.
Eu havia descascado três quilos de camarões, graúdos, que prefiro, ainda que sejam mais caros. Diminuo a quota, se for o caso, mas estimo a qualidade. O Sr. Antônio é o meu fornecedor e amigo, aqui em Caiobá. Telefono para ele, do meu celular ao seu, sempre dizendo a pouca e mesma criativa pouco frase: É neste telefone que falo com o Sr. Antônio, que vende os camarões graúdos? E sempre, quem me atende diz: “Sim, Dona Isabel, aqui é o Antônio dos camarões graúdos, tudo bem com a senhora? Conheci sua voz...”
Pronto. Feito tal contato, fica pré-estabelecido que terei muita atividade nas próximas horas. São enormes, sem dúvida, os camarões, mas ele somente os vende com casca...
Lavei as mãos que, ainda assim, cheiram camarões. Mas logo em seguida vou tomar banho e prefiro sentar-me à beira da piscina, tomando uma cervejinha de lata, condição perfeita para sentir-me em férias, feliz, aqui na praia, no meu amado apartamento da Manoel Paranhos.
O Dia de Finados surpreendeu. Não chove, o que sempre ocorre neste dia do ano, e o mormaço chega a queimar.
Sentei-me, mais ou menos sem perspectivas, como me sinto sempre que estou aqui.
E isto é muito bom.
Por isto descanso tanto.
E também, pelo mesmo motivo, é bom que não sejam muitos os dias deste lazer. A falta da perspectiva para viver não pode se alongar jamais. Uns poucos dias, no máximo quinze.
E volta-se aos projetos, enquanto durar a vida.
Desta vez, são apenas quatro dias, o que torna mais valioso este momento.
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Eram pessoas muito interessantes e juntas, formavam um grupo digo de menção para gente que se interesse por gente.
Estou situada neste rol, com acentuada demonstração de levar muito a sério o que analiso.
Inicialmente, o que chamou a minha atenção foram os dois cachorros. Um preto, bonito, com cauda de farta pelagem, de médio porte. O outro, em lastimável demonstração dos contrários, pequenino, com alguma doença que lhe consumiu o que deveria ter sido a totalidade de seus pelos, com a aparência avermelhada e feia, como se estivesse em carne viva, origem de presumível doença generalizada.
Ambos, o preto e este, como todos os cães, à volta dos donos, em expressiva demonstração de alegria, abanando a cauda aos objetos de sua afetividade. Principalmente, o preto, quanto ao abanar da cauda. O pequenino mexia um minúsculo rabicho, de má qualidade, tão pouco expressivo, uma lástima, também afetado pela doença
Ali, para lá e para cá, iam e vinham em torno aos donos, hipotecando-lhes afeto e zelo.
Eu prestava atenção nos animais. De repente, detive-me a analisar as pessoas que já tinha visto. Ver é bastante diferente de avaliar, de analisar...
E esta visão, tão análise, subitamente, levou-me a um sentimento de certa agonia. Inesperadamente fiquei aflita pelo que via. E ainda que me afligisse, o que eu via era muito bonito.
Talvez agora, que já se foram, é possível que alguns detalhes me escapem, o que será uma pena.
Como disse, passei da análise dos animais a avaliação das pessoas.
O grupo era formado por cinco delas, sendo duas mulheres, adultas.
Uma delas negra, bem magra e muito bem-feita de corpo. Sobre os cabelos crespos, típicos nesta cor de raça humana, um boné branco, que surpreendia pela brancura, com uns dizeres que não consegui ler, de onde eu estava, no alto, aqui em minha área.
Ela vestia camiseta, limpíssima, que em seu corpo esguio, alcançava-lhe mais que o meio do corpo, quase aos joelhos. Não era muito alta. Usava uma calça das que se usa para a prática da ginástica, ressaltando ainda mais as suas pernas magras e, nos pés, sandálias havaianas.
Durante todo o tempo em que observei este maravilhoso grupo, o predomínio do sorriso desta moça me impressionou.
A outra mulher, bem gordinha, também vestindo camiseta, usava um bermudão, tênis, bastante envelhecido e seu cabelos, bonitos, porém maltratados, estavam presos por um elástico ou não sei o que, impossível de divisar.
As crianças, que inicialmente eu vi compondo o grupo, eram três meninas. Duas, quase chegando à adolescência e a outra, menina ainda. Certamente, a mais moreninha seria filha da jovem negra. As outras duas, parecendo irmãs, demonstravam uma relação de filhas e mãe, com a jovem mulher mais gorda.
Esta gente conterrânea circundava um estranho meio de transporte. Uma bicicleta, ou, ao menos parecia, com três rodas, não sei de que modo adaptadas, como se fosse um triciclo infantil.
Observei que era ao contrário, quase sempre veículos que possuem três rodas, tem uma à frente e duas na parte de trás, o que de certo modo facilita o equilíbrio.
Aquele meio de transporte da brava gente brasileira era ao contrário. As duas rodas eram na frente. Na roda de trás, sobre a qual ficava o assento usado pela mulher morena, era a extensão da coragem e da bravura que dirigia toda a parafernália ali amontoada.
Sim, o impulso dado não poderia ser oriundo apenas daquela frágil mulher...Deus se manifesta. Sempre!
Voltando ao esquisito, extemporâneo e invulgar veículo, como mencionei, sobre as duas rodas da frente alguém engenhoso elaborou incrível tecnologia, misto de suporte, caixote, ripas, onde, pouco a pouco, se ia acomodando tudo o que ali depositava aquela gente operosa.
Elas pararam o único, invulgar veículo de transporte, mais ou menos em frente a entrada do nosso edifício e foram colher a matéria prima do seu sustento de vida no edifício ao lado.
Ali existe um nicho de uns dois metros quadrados, onde é depositado todo o lixo de todas os apartamentos, em número elevado, até que o caminhão da Prefeitura o recolha.
O veículo permaneceu no meio da rua, onde o haviam largado. Os cachorros, o saudável e o não saudável sacudiam, respectivamente, a linda cauda preta e o pouco expressivo e doentio rabicho.
As mulheres e as meninas, durante uns vinte minutos, exerceram uma atividade digna de ser mencionada. Enquanto as mais jovens iam, para colocar no veículo e vinham, para buscar novas coisas, e iam e vinham, as mulheres separavam objetos, garrafas plásticas, caixas de papelão, pequenas, grandes, médias ou mínimas, jornais, em pilhas absurdas, latas e uma ou outra coisa que eu não divisava ou não sabia o que seria.
Por vezes detinham-se a avaliar algum objeto, reuniam-se em roda, confabulavam e davam palpites, umas e outras. Eu não conseguia escutar. Assim que o interesse se dissolvia, voltavam ao trabalho, tão rápidas quanto atentas ao que faziam.
E o veículo lá, no meio da rua, digno e respeitado pelos automóveis que transitavam nesta rua central do bairro de Caiobá. Carros e motos desviavam-lhe. À sua volta, os cães, igualmente dignos, propriedade daquele grupo de pessoas, cumprindo o seu papel de lealdade.
Em certo momento, o responsável pela vigilância do prédio a frente do nosso, apareceu com um enorme saco, aparentemente cheio de roupas. Entregou a uma das meninas, a maior, que atravessara a rua correndo para apanhá-lo, dizendo-lhe alguma coisa que não ouvi.
Ouvi, porém, a jovem mulher gordinha falar com uma voz impregnada de riso:
“Tem roupa para gorda”?
Todas elas riram e se disseram frases que não entendi. Uma das meninas, outra que não a que apanhara o presente, permaneceu segurando o saco, como se este fosse um tesouro.
O veículo ia ficando saturado. Um ou outro utensílio, garrafa, lata, já não ficava retido entre o atulhado nível de retenção daqueles objetos, causando incômodos às duas meninas, que procuravam segura-los com as próprias mãos ou apanhá-los na calçada.
E sempre rindo, assim, assim, tão adequadas a própria realidade...
Algumas pessoas saíram do nosso edifício, descendo a pequena escada e ali encontraram com amigos ou parentes, a julgar por suas demonstrações afetivas, bastante evidenciadas e eufóricas.
Ali, muito próximas, aquelas cinco pessoas sobre as quais escrevo e detenho a minha análise, continuaram sua tarefa, sem demonstrar nenhuma revolta por aquele grupo recém-formado que conversava, alheio, totalmente alheio ao seu trabalho, o desta laboriosa e brava gente brasileira.
Com seus olhares, porém, observavam. E escutavam, atentas.
A recíproca inexistiu.
O novo grupo nem pareceu notar que ali havia mais gente.
Nem as meninas, nem as mulheres. Ou os cachorros... O de linda cauda ou o de rabo precário.
Muitos menos prestavam atenção àquela fenomenal engenhoca, ali, no meio da rua, repleta de lixo.
Para uns.
Para outros, de matéria prima de vida...
Para mim, encanto absoluto!
De novo, na rua, só as vozes que eu não escutava e a labuta daquela gente, um pouco arrefecida com a saturação do seu maravilhoso meio de transporte.
Inesperadamente, da direita do meu prédio surgem dois meninos pequenos, um loiro, outro moreninho, semelhante à menina morena, com fisionomia também parecida com a da mulher do riso fácil.
Eles vinham muito alvoroçados, trazendo também garrafas plásticas vazias, latinhas de cerveja ou refrigerantes e pelo que percebi, muitos jornais. Um pouco mais atrás, uma senhora bem gorda, de mais idade, carregava um recipiente grande de lixo, dos que se usa para guardar roupa suja ou roupa limpa. Ou, realmente para guardar lixo, em casas de famílias maiores.
Juntou-se ao grupo, rindo e aparentemente feliz com o que tinha entre os braços e que mal conseguia sustentar.
A agitação intensificou-se, novamente. Um reiterar de buliçoso alvoroço.
Outra vez ocorreram tentativas de acomodar o que os meninos haviam arrecadado e outra vez coisas caíram e foram arrumadas.
O enorme recipiente de lixo continuava ali, no mesmo lugar, com dificuldade seguro pela senhora que chegara, entre os seus braços gordos e flácidos pela ação de um tempo que não diminuíra, entretanto, a sua alegria.
E grande bem-estar, pelo que aparentava, frente a vida.
Enfim dispuseram-se, todos, a ir embora.
A mulher morena, de rizo fácil, magrinha e ágil, como se entre todos houvesse um acordo tácito, ágil, pulou para o selim e iniciou a dirigir o seu meio de transporte, não sem um certo sacrifício.
Lixo, Entulho, Criatividade, Dignidade e Esperança passaram a mover-se.
À sua volta, o cortejo lindo, qual séqüito, acompanhava, caminhando. Os dois meninos, a três meninas, a jovens mulheres e a mulher não jovem, de braços flácidos e riso atuante.
Passaram ali do meu lado e ainda me estiquei para vê-los. Eu os perdi, de vista... apenas física!
O respeito que tenho pelos carrinheiros é algo mais profundo do que apenas o registro que o meu olho retém sobre o trabalho que elaboram.
Vi além, sempre, SEMPRE, EU muito além. Trata-se do respeito e da estima que tenho por quem encontra nos dejetos do alheio uma fonte digna de sobrevivência.