É CONVERSANDO QUE A GENTE SE ENTENDE


 
     Início dos anos 80. Saio exausta do meu colégio, no Méier, às 18 horas e pego um trem tão lotado que fui levada para dentro pela gigantesca onda humana que se aglomerava na plataforma. Ocupei a quarta camada de gente, tentando achar uma vaga para assentar os pés, pois quando um pé se mexia, outro já se enfiava embaixo para lhe ocupar o lugar. Naquela época, trem com ar condicionado pertencia aos livros de ficção científica. O calor era insuportável! E o que dizer dos odores variados? Uma mistura daqueles biscoitinhos amarelos com sabor e aroma de queijo vencido, cerveja, cachaça, marmita, suor, borracha queimada e as fragrâncias top de linha do momento que eram vendidas em revistas.
     Os gritos dos camelôs que ofereciam de tudo: veneno para ratos, balas, canetas, picolés, imitação da botinha da Xuxa, entre outras quinquilharias vindas do Paraguai, misturavam-se com as conversas edificantes sobre futebol, mulher, culinária e novela.
     A elite — os passageiros que conseguiam um assento — dividiam-se em três grupos: os que fingiam dormir, quando se aproximava uma grávida, um deficiente físico ou um idoso, os jogadores de sueca e aqueles que traziam bolo, doces, salgadinhos e bebidas para comemorar os aniversários do dia.
     Dentre os passageiros que permaneciam em pé, as mulheres eram quem mais sofriam. Havia sempre um engraçadinho querendo tirar proveito da situação, principalmente se ela estivesse sozinha. Foi o que aconteceu naquele final de tarde.
     Chegando à estação de Cascadura, entrou um casal bastante exótico: ela, uma linda mulata, estilo Globeleza, trajando calça branca de lycra coladíssima e miniblusa vermelha com um generoso decote. Ele era baixinho, franzino, com um semblante cansado, marcado pela inanição. Mal entraram no trem, os homens fizeram aquele alvoroço e a mulherada começou a tecer comentários maledicentes, motivados pela inveja, é claro.
     Nisso, lá do fundo do vagão, parte um mulato enorme, sem camisa, exibindo  desafiador os músculos privilegiados. À medida que ia afastando, sem pedir licença, os outros passageiros, estufava o peito  com aquele olhar de superioridade, de quem tem o domínio de quaisquer situações. Parou bem atrás da moça e começou a boliná-la, ignorando-lhe o companheiro. Chegou pertinho do ouvido dela e sussurrou esta pérola:
     —Toda deliciosa! Se eu a pego eu a lembo toda!
     A moça estonteada e, com os olhos em desespero, se aproxima do namorado, abraçando-o pela cintura, para mostrar ao atrevido que não estava disponível. Porém, o mulato nem aí! Comprimiu-se o quanto pôde contra a escultura negra e começou a fungar-lhe à nuca, dizendo-lhe frases tão românticas quanto a primeira. As pessoas que estavam à volta, já prevendo a tragédia, começaram a se espremer umas contra as outras, tentando alcançar o próximo vagão, antes que o pior acontecesse, enquanto o namorado nada percebia.
     Dominada pela vergonha e muito aborrecida com a falta de atitude do companheiro, a multa reclama baixinho:
     ─ Pô, Creiton, tu num tá veno não?
     ─ Veno o quê, mozinho?
     ─Tem um tarado falano sacanage e passano a mão ne mim o tempo todo!!!
     Aí, não prestou! O rapaz enfurecido  avançou para cima do mulato, na mais louca demonstração de posse! Deu-se início uma confusão generalizada. Eram cartas de baralho voando, caixas de mercadorias, bolsas e mochilas largadas nos bancos, crianças chorando, berros, palavrões, empurra-empurra, enquanto um coro de moleques entoava palavras de ordem: ─ Porrada! Porrada! Porrada! Mulheres clamavam pela misericórdia divina e diziam que aquilo era o fim dos tempos, que "satanás estava disfarçado naquela sirigaita para semear a luxúria e a desordem"! Alguns passageiros mais cansados preferiram aguardar sentados o desfecho trágico.
     Cleiton, o namorado ofendido, queria provar ao malando que a pérola negra já fora garimpada e que, portanto, já tinha dono. Estava decido a asfixiar o mulato até a morte. Entretanto, o máximo que sua estatura lhe permitiu alcançar foi aquele peitoral forjado na academia. Então, com o olhar bovino, espalmou as mãos sobre o peito estufado do mulato e perguntou autoritário:
Ô, mermão, tu tá pensano que mulé dos oto é INPS
[1] pa tu ficá se incostano?
Atônitos, os passageiros reagiram com muitos aplausos e gargalhadas e, finalmente, puderam respirar aliviados! Afinal, é conversando que a gente se entende...

 
[1]Nos anos 80, O INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) era INPS (Instituto Nacional da Previdência Social) e, quando algum empregado necessitava de uma licença para tratamento médico, dizia-se que ele estava "encostado pelo INPS" 

 
Lídia Bantim
Enviado por Lídia Bantim em 22/12/2016
Reeditado em 13/04/2017
Código do texto: T5860731
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