Trinta milhões

Estava certo de ter conquistado o primeiro emprego sem entrevista. Aquela célebre pergunta sobre o que fazia da vida estava respondida. Havia se tornado um escritor virtual. Ganharia graças aos anúncios veiculados na página eletrônica. A vantagem do escritor semiprofissional virtual consistia em começar o expediente sem localizar a mesa do chefe. Depois do almoço partia para o micro. Abria a página para contabilizar os leitores. Pelo menos quinhentas pessoas haviam passado os olhos pelas tramas elaboradas com zelo. Para um escritor interiorano o número equivalia a uma multidão. Por ironia do destino morava ao lado de um jornal velho, triunfo dos séculos, que não lhe publicava. “Crônicas destoantes”, diziam, sem chance de publicação. Para quem vive no campo pouco importa um miúdo passarinho no galho... A boa hora virtual tinha chegado. Do contrário a hipótese de trabalho morreria como Lindonéia no teatro, instantaneamente.

Diante do micro recordava o saudoso período de redação na capital mesmo com o salário do mês não cabendo na semana. Ocupou por dois anos o cargo de confiança da faxineira, o seu famoso CCF. (Cargo de confiança da Faxineira). Cargo específico para escritores novatos. Quando o redator lhe exigiu um texto sobre canoa e igarapé, pediu as contas, recebendo a exoneração. Definia seu trabalho como a de um matuto passeando numa obra de arte coletiva e o matuto partiu.

Na internet sentiu que seria animador e venceria as dívidas! O cheque chegaria por correspondência. Acabariam as vergonhas financeiras. Estava evoluindo porque os velhos jornais não podiam contar leitores. Cinqüenta e quatro criaturas haviam lido a história do “Céu no Inverno”. Trinta e duas haviam procurado em “Píer, Oásis da Liberdade”, a chance de confessar o amor pela própria mulher. Só estava faltando à empresa enviar os cheques prometidos e ansiosamente aguardados. Trabalhando virtualmente em casa ninguém lhe diria nada sobre a tradição se metendo em seu conservadorismo.

A página oferecia lateral gorda para anúncios. Com “Sem Deus na Alma” surgiram reclames de salvadores profissionais. Pois se anunciasse a “Chegada do Divino” se abriria também uma janela laica e jovem. Um espaço para o homem sem Deus e bom, atualizado, razoável com novas ofertas dos fatos. Funcionava assim: textos pequenos, mensagens curtas e assimiláveis. Sentia que podia ganhar a vida em casa, sentia que poderia ganhar trinta milhões de reais. Com trinta milhões pagaria precatórios (divida oriunda do sonho juvenil da imprensa), colocaria o advogado, o mesmo que permitiu escoar os prazos legais do processo à revelia num diálogo respeitoso sobre o próprio direito. E que primitiva questão de ordem para uma categoria tão brilhante! Pensou. Mas só com “dinheiro” alcançaria a volta por cima das ilusões intelectuais de menino.

Por sorte chegaria o dinheiro. Estava tudo certo! A empresa creditava os anúncios e eles estavam aí do lado dando sopa. Com o fim do ano chegando e os precatórios vencendo seria a salvação. Beijaria tanto o Papai-Noel quando ele chegasse com os cheques que o coitado ficaria sem barba por alguns anos. Logo a barba que é sua assinatura.

Agora chegava cada vez mais depressa os leitores e os anúncios na página. Havia entusiasmo com o progresso da técnica. Descobriu que a leitura virtual equivalia à aparição de um Saci Pererê em meio ao trânsito confuso das idéias. Algo fabuloso! Compreendia o quanto alguém arrecadava enquanto o cronista escrevia. Que havia o chefe desconhecido que embolsava justos vinténs. Devia sobrar algum no final das contas. Mas quando chegaria? Via a luta salarial virtual antecipada nesse sonho de escritor semiprofissional. Escritor criado na Coxilha infante. A Coxilha que era o lugar dele, da lua e de mais ninguém. A primeira chance nesses anos todos para demonstrar que nunca fora um vagabundo. Um vagabundo que apenas lia e escrevia. (Ficção Virtual)