Um cavalo chamado Adamis

Quando Quitério partiu para a capital estava vivendo em grande dificuldade. Empregou-se como tratador de cavalos na chácara do coronel Honorato. O coronel possuía terras que se estendiam a perder de vista. Era casado e pai de dois filhos. O filho mais velho, homem erudito, era criatura de grande simplicidade. O segundo possuía o espírito alegre e despreocupado. Carlos e João, Carlos o erudito, João o trovador.

Quitério tomava chimarrão sozinho na estância sentindo o vento e a saudade de casa. A função estava incerta, desconhecia a lida. Permaneceu muito tempo aguardando o patrão até que surgisse de dentro do casarão. Caiu à noite e permaneceu sozinho olhando os estábulos, gineteando o vulto dos animais na sombra dos eucaliptos, contando as efêmeras no vento. Ficou estabelecido que a sua tarefa era tratar de um cavalo que havia matado o tratador. Um cavalo branco assassino.

Ganharia um soldo mínimo para manter o animal confinado.

- É no cercado que deve padecer o criminoso, disse-lhe o Coronel Honorato, ordenando-lhe: Não tire ele nunca daí!

Quando murchava as orelhas avançava com os dentes afiados, fedendo a enxofre como um demônio. A força colossal e os coices lançavam qualquer corpo facilmente ao vazio inerte.

Quitério começou seu trabalho pela observação. Notou que um dos filhos de Honorato possuía o hábito de correr a mão pela grade lateral do estábulo. Emitia um arpejo rústico que enfurecia o cavalo. (Um excesso incompreensível). Tentou mudar tal comportamento. De longe se ouvia o relincho da triste fera possuída em sua tortura confusa.

Em poucos dias levou o cavalo para o campo. Esperou cair a noite para que ninguém presenciasse a doma. Haveria de domá-lo. Guardou algumas pedras nos bolsos da bombacha. Tomando a corda pelo buçal esperou Adamis se aproximar. Quando abaixava as orelhas era o sinal do homicida.

Arremessou a primeira pedra, firme arremesso, pedregulho que atingiu a cabeça do puro sangue. Sempre sustentando a corda, invertendo a direção dos fatos, até se fazer compreender na linha do olho. A segunda pedrada veio ao novo sinal das orelhas murchas. Desta vez não teve intenção de acertar. E a besta endireitou o pescoço. A partir desse momento sentiu que podia contar com um primeiro afago cordial.

João, peão velho, quase nunca falava, disse:

- Tão novo se arriscando desse jeito!

Em poucos dias era possível lhe dar ração e água sem tirar o cocho do lugar. Apenas Quitério teve ordem para alimentar “se quisesse” o animal. Estava condenado se permanecesse, ninguém estava interessado nele.

O dono da Casa de Ração ficou boquiaberto quando presenciou a cena. Então era possível se aproximar daquele cavalo? Alguém havia conseguido! A cidade comentava o fato num burburinho mágico.

Quando Coronel Honorato retornou da viagem desembarcou satisfeito com o novo corredor. Houve um churrasco comemorativo. Quitério era um peão que lutava para viver. O tempo havia passado sem nenhum desembolso, nem consideração com as suas necessidades. Quitério e Adamis viviam na mesma prisão. Quitério lançou uma hipótese para resolver a situação.

- O patrão poderia lhe dar o cavalo como pagamento.

O fazendeiro irritado, tomando uma cobrança legítima como presunção, confessou: prefiro “demitir” a lhe dar o cavalo.

Virou-se para o filho comentando.

- Bobby Fischer está sendo procurado pelos EUA, mas obteve residência na Islândia. Jogou sem permissão. Deviam deixar o cara jogar xadrez em paz Jogou com os Russos sem permissão...

Desviando-se do assunto numa fuga perfeita.

O empregado retomou o tema.

- Já que o senhor me demitiu faço uma aposta. Aposto o dinheiro que o senhor me deve em Adamis, pois esse cavalo já é meu. Ganhando levo o cavalo. Se perder saio sem nada, porteira afora. Levando apenas o chimarrão.

- Pois aceito! Disse o coronel.

Marcaram a hora da carreira. Havia poucos dias para contratar um jóquei.

Procurou jóquei Olegário, não quis. Procurou sargento Miguel da infantaria, não quis. Procurou jóquei Valeriano, também não quis. Ninguém queria morrer no lombo de um cavalo branco. Por acaso encontrou um pescador que se encontrava mal de recursos e com muitos filhos pequenos para alimentar. A safra dos frutos do mar não andava boa. Era jóquei, pedreiro, carpinteiro e pescador. Chamava-se Sororoca e para ele botou fé num bom conselho:

- Não use o relho! Que sinta a palmada leve da tala. Se ele sentir o rebenque alinhará o pescoço arremessando a montaria. Tome cuidado! Teria que correr quatrocentos e cinqüenta metros em cancha livre e vencer. Era a vitória ou a fome das ruas.

A cancha ficava noutra fazenda. O dono portava revolver calibre trinta e oito, dizendo.

- Que ninguém se preocupe com a largada, na sua cancha não ocorriam desigualdades! Quitério percebeu a marcação inexata dando vantagem descarada ao cavalo do Coronel Honorato.

Permaneceu calado. Sério. Duro.

Depois da largada foi à vez de Adamis emparelhar rápido. Quase todo o percurso dos primeiros metros manteve-se na mesma velocidade. Cabeça com cabeça. De repente tomou a distância necessária para não ser confundido. Quitério percebeu que o atrevimento de Adamis crescia na razão direta das suas dificuldades.

Tércio Ricardo Kneip
Enviado por Tércio Ricardo Kneip em 30/07/2007
Reeditado em 10/07/2020
Código do texto: T585825
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