MINHA CALÇA LEE
Era por volta das treze horas e trinta minuto, quando vinha de casa depois do almoço e aproveitei para desviar o caminho do trabalho para ir até o Mercado Central de Fortaleza; naquele dia da semana de um mês qualquer do ano de mil e novecentos e setenta e dois. O coração batia forte. A passos largos, quase correndo, caminhava eufórico como se fosse encontrar pela primeira vez uma namorada.
A euforia era tamanha que durante o trajeto rasquei as calças. Lembro-me, como se fosse hoje, que trajava uma calça verde de nylon. A camisa não me recordo. A lembrança da calça veio porque rasgou durante a caminhada, na euforia de chegar rápido ao meu destino: o Mercado Central, onde Isaac, um amigo de colégio, aguardava-me na loja de redes do pai dele. Afinal de contas, naqueles idos de setenta, poucos abençoados podiam se dar ao luxo de comprar uma calça Lee. É... Uma calça Lee, sim, motivo de minha aflição naquela ocasião.
Até o fim da década de setenta, começo da de oitenta, calças jeans eram produtos raros no Brasil, principalmente no Ceará. Somente a partir de oitenta começaram a surgir mais comercialmente calças jeans, as famosas US Top. Possuir uma calça Lee ou Levis era um sonho naquele tempo. E quando se conseguia comprar uma; a euforia tomava conta do felizardo, até porque era contrabandeada. E eu, através do meu amigo Isasc, estava a ponto de ter a tão almejada e cobiçada calça. Portanto, prestes a tornar-me um felizardo. Mesmo sendo nova, já causaria inveja. Pois, o jeans quanto mais desbotado maior valor tinha, não digo charme porque a palavra não estava em moda ainda. O desbotamento vinha pelo uso, não havia ainda desbotamento artificial do tecido como atualmente. De qualquer forma, eu tinha uma calça Lee.
Quando cheguei ao Mercado o coração já estava quase saindo, por conta da euforia e da pressa em chegar para receber a mercadoria. Recebi e mesmo com a minha calça rasgada não troquei de roupa no local, vestindo a calça nova, passei o resto da tarde trabalhando com o fundo da calça resgado, embora não ficasse amostra. Minha intenção era somente vestir a nova calça no próximo sábado. Aí eu me sentiria um rei e causaria inveja a todos os meus amigos, quando nos encontrássemos, inevitavelmente, à noite em alguma tertúlia e certamente seria o centro das atenções. Especulações as mais variadas como eu havia conseguido a proeza de comprar uma calça jeans. Quanto fora, se era fácil arranjar outra, essas coisas.
Sai do Mercado e fui correndo para o trabalho, para não chegar atrasado e já ir mostrando aos colegas meu troféu e aguardar o sábado. O sábado, mesmo que tivesse recebi a calça na sexta-feira e não foi, tenho plena certeza, quase não chega. Demorou mais de um ano. O anseio a cada dia ficava maior. E nada do sábado.
Vestir-se bem sempre foi sinônimo de ostentação e naquela época era mais ainda para chamar atenção das gatinhas, porque de outra forma era impossível, visto que quase ninguém tinha carro; luxo que restringia-se a meia dúzia de filhos de papaizinho, e eu não era um deles. Andar bem vestido era a única opção, grande trunfo.
Carro, volto a dizer, poucos tinham. Acho que por onde nós morávamos e nos bairros que frequentávamos somente os filhos de Waltério Cavalcante possuíam. Todos meus amigos eram lisos mesmos. Poucos trabalhavam para ter algum dinheiro, a maioria era estudantes que dependiam dos pais e estes geralmente não tinham grandes condições ou quase nenhuma.
Portanto, ter um emprego e andar vestido numa calça Lee era ostentação de mais. E eu acabara de realizar um grande sonho. Quanta felicidade, quanta alegria por uma simples calça.
O tempo passou, e o jeans foi se popularizando por aqui. Fui embora para o Rio de Janeiro e por lá permaneci uns sete anos. De volta para o Ceará, fui trabalhar em auditoria independente e um belo dia sou convidado para ser controller da Lee Nordeste S/A, fábrica de jeans que se instalara aqui no Ceará, empresa do grupo Vicunha e que estava fabricando as famosas calças Lee.
Durante o tempo que trabalhei lá usei muitas calças Lee, camisas, bermudas, mas nada se comparava mais à primeira que me dera tanta euforia. O jeans já estava popularizado e podia se comprar em qualquer loja da cidade. E aquela gostosa sensação juvenil de possuir uma calça importada, contrabandeada ainda mais, das maiores marcas de jeans do mundo, não havia mais. Entretanto, fiquei lisonjeado em ter exercido minha profissão como contador de uma empresa, cujo meu sonho juvenil realizara, assim como jamais esquecerei o grande momento que meu amigo Isaac, hoje doutor em Matemática, diretor do curso de Matemática da Universidade Federal da Bahia, proporcionou-me naquele ano de mil e novecentos e setenta e dois. Tempo de adolescente, cuja saudade vez por outra bate.
HENRIQUE CÉSAR PINHEIRO
FORTALEZA, DEZEMBRO/2016.