Artur
Poucas coisas machucam tanto quanto o sorriso de uma criança. Sorriso besta por uma coisa besta e sem graça, mas ainda assim um sorriso de verdade. Um abraço e um beijo na bochecha. Vendo aquela criança pulando pra lá e pra cá, perdida em seu mundo simples de carrinhos e brinquedos não pude deixar de pensar que um dia já devo ter sido assim. Já fui? Sei lá. Lembro de meu pai enforcando minha mãe, lembro de quando a gente se trancava no quarto e meu pai ficava socando a porta por fora. Lembro daquela vez que comi o sucrilhos colorido da arara no Parque da Mônica. E da discussão depois disso. Sei lá. Não lembro dos meus carrinhos nem dos meus brinquedos. E a criança vem até mim. Ela quer colo. Dou colo. Seguro a criança com um medo danado de a derrubar, de quebrar um ossinho sequer de suas mãozinhas tão pequenas. Mas a criança só quer colo e brincar de cavalo. Dou colo e pulo que nem um cavalo. O cavalo vira avião e a criança sorri a dois metros do chão, sequer consciente do meu medo de a deixar cair. Coloco a criança no chão e ela volta para seus carrinhos. Os olhos da criança são espelhos que refletem a própria podridão de minha alma. "Meu deus, no que foi que eu me tornei?". Saio da casa e vou direto para o bar. Duas, três, quatro garrafas. Pode descer. Enquanto eu lembrar a senha do cartão pode mandar. Eu não ligo. Só quero tirar essa criança da minha cabeça. Na sexta garrafa ela some, mas também sumo eu.
A caminho de casa acendo um cigarro. Vou a pé. Moto? Assalto? Revólver? Nem ligo mais. Que venham, que me roubem, que estourem meu crânio que eu nem ligo mais. É um favor que me fazem. A caminho de casa acendo um cigarro. Dou uma tragada forte. O gosto quente e amargo do câncer se mistura com o amargor de seis garrafas de cirrose. Olho para o céu. É noite de lua cheia. O céu está nublado. Penso de novo na criança. No cavalo, no avião e principalmente em seu sorriso. Dou uma tragada ainda mais forte e solto a fumaça lentamente. Ainda bem que não tenho filhos. Eles te obrigam a ser feliz e viver até onde der. Ainda bem que não tenho filhos, nem esposa, nem namorada. Só assim posso me dar ao prazer de morrer lentamente e sofrer em silêncio.
Para a primeira e única criança que eu segurei em toda minha vida. Para o dia em que você for crescido e começar a suspeitar da maldade do mundo. Saiba que um dia a maior podridão do mundo te segurou , te fez carinho e brincou de esconde-esconde com você. Neste dia eu me senti culpado de chegar perto de você e tive muito medo de te fazer mal. Mas nesse mesmo dia você também me fez muito feliz. Que você possa me perdoar então, por ter sido feliz às suas custas.