GOSTOS DE NATAL

Da série:
Pequenas crônicas do cotidiano.

Retorno do quintal lavado de chuva.É quase noitinha e um sabiá fuxica-me aos ouvidos, encantos de seu dia de pássaro.
[Sabiás,tão somente os machos,gorjeiam intensamente nesta temporada.É o tempo do acasalamento,das ninhadas,enfim...
Então,estas aves habitualmente caladas no período de outono e inverno,rasgam nos bicos os mais belos trinados quando a primavera desperta jardins dormentes e vão se calando,pouco a pouco, assim que o verão se acentua]
O macho canta enquanto a fêmea choca os ovos,para que esta não se estresse no longo período em que permanece sobre o ninho.
Quando nascem os filhotes,o "papai sabiá" intensifica a cantoria para que os rebentos aprendam como dilacerar do peito a magia das mais belas cantigas.
Quando pia durante a madrugada,tem por objetivo afugentar algum possível predador que percebe rondando a ninhada.
Mas...Sabiás à parte,voltemos ao quintal.
Retorno do meu pequeno paraíso,trazendo nas mãos um punhado de pêssegos brancos da qualidade solta caroço.
Uma delícia!
Sem nenhum tipo de sulfatos ou agrotóxicos,pendem dos galhos ao redor da cerca de ripas,dividindo espaço com vagens,cenouras,pimentões,couves e espinafres.
[Produto do trabalho de uma polaca que me atura há quase 40 anos.Polacos amam lavrar a terra,semear e sentir o prazer da colheita.Seja em hectares que se perdem de vista ou num quintalzinho mixuruca,que é o nosso caso]
A polpa macia dos pêssegos (daria para se comer com colher) remete-me a um tempo longínquo.
Então...
Os vidros de compotas,enfileirados sobre um balcão de madeira maciça envernizada,uma toalhinha de crochê com um bibelô qualquer dando o arremate à decoração.
A dona da casa,envaidecida com o visual das frutas na calda e o conhecido comentário:
"São compotas para o Natal!"
Como eu gostaria de que aquele ontem tão distante fosse o meu agora.
Os pêssegos que hoje degusto,tem o exato sabor daqueles natais embaçados na poeira do tempo e um ligeiro travo de saudade por instantes me faz menino diante do velho balcão.
Ah! Estes gostos de natal a eternizar-se em memória...
Saudosismos piegas,incontidos,frutos de longos percursos pelas veredas da existência.
[Tempo que nos fragiliza]
Este sabiá incansável lacrando no bico esta tarde lavada de águas de dezembro!
Marejado quintal,quase marejado olhar...