CATILINA E O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Agora é jurisprudência: se você ocupa um cargo público e um magistrado manda desocupá-lo, você não precisa obedecer essa ordem até que o respectivo tribunal a examine coletivamente. Mais ainda: você nem precisa receber a respectiva intimação, pois é perfeitamente válido servir um chá de cadeira ao oficial de justiça, deixando de atendê-lo durante todo o expediente. Não há, aí, desacato ou desobediência. De forma alguma.
Para firmar esses parâmetros é que serviu a sessão de ontem (07/12/2016) do Supremo Tribunal Federal. Deu alforria ao presidente do Senado e, por extensão, um presente de Natal aos prefeitos, governadores, presidentes de assembleias, câmaras de vereadores e tantas outros políticos investidos de qualquer parcela de autoridade. Agora, todos podem prevaricar à vontade pois, com um braço só, a Justiça não os alcança. Se a decisão de um ministro do STF foi ignorada, a de um de “juizeco” de primeira instância vai para a lata de lixo.
E mais: se o julgamento monocrático incomodar o ilustre agente público, é sempre possível reverter, a toque de caixa, a pauta do Tribunal a fim de que, em 24 horas, ele afaste de sua cabeça essa espada de Dâmocles. E, aí sim, sua excelência poderá proclamar aos quatro ventos que a Justiça não tarda nem falha. Para ele, não. Feito isso, ele já pode abrir as portas de seu gabinete e receber o oficial de justiça porque, nas suas palavras, “decisão judicial é para ser cumprida.”
Diante desse precedente, imaginemos agora a hipótese de uma liminar do mesmo teor concedida no início ou durante o recesso dos tribunais. Não vale nada enquanto os sobrejuízes não retornarem ao trabalho e reapreciá-la. O réu pode usufruir normalmente todas as prerrogativas do cargo, aí incluídos o vencimento e o carro oficial. Pode tirar férias e levar a família a Disneyworld. Qual o problema? Seu advogado estará pronto para invocar o efeito “vinculante” do precedente evasivo da Suprema Corte, que deixou de sancionar a rebeldia do senador a uma ordem judicial e o maltrato ao mensageiro dessa mesma ordem.
Se, na questão de fundo, houve equilíbrio no julgamento, para equalizar o sistema de freios e contrapesos, faltou um cartão vermelho na sessão de ontem. Um cartão vermelho que reverberasse em todos os tribunais do país, sinalizando que ainda há juízes em Berlim. O que se viu, ao contrário, foi apenas um frouxo puxão de orelha, só “para inglês ver”. Nesse ponto o Supremo amarelou, usando do privilégio de “errar por último”.
Há poucos meses assistimos ao fatiamento do impeachment, desfigurando um preceito constitucional unívoco. Ontem, foi a vista grossa sobre um crime de desobediência. Atuando em ambos os episódios, sobressai a figura do mesmo personagem, com a capacidade de sobrevivência de um Rasputin e as maquinações de um Catilina.
Diante de tal personagem o Supremo Tribunal Federal, de certa forma, se encolheu. Lamentavelmente, não chegou ao plenário da Suprema Corte o brado de Cícero: “Quousque tandem abutere Catilina patientia nostra?”
Nem houve embargos declaratórios, tão murcha ficou a toga.