Divino ateu

Sou um homem comum

brasileiro, maior, casado, reservista,

e não vejo na vida, amigo,

nenhum sentido, senão

lutarmos juntos por um mundo melhor (Ferreira Gullar)

Leitores da Folha de São Paulo sentiremos a falta de, aos domingos, saborear a crônica de Ferreira Gullar. Ali, na apresentação, anunciava-se o texto do veterano crítico de arte e poeta consagrado. Eu, como tantos outros, folheava o jornal impresso ou clicava o texto na internet. A foto do autor e o título da crônica eram aquele sinal alvissareiro de que o poeta estava bem. E ele ainda costumava nos informar de sua boa condição, pois não era raro que o víssemos concedendo entrevista na tevê.

Sentimento que nunca lhe faltou foi certamente a coragem. Corria o ano de 1950, e o futuro grande poeta era locutor em sua terra natal, São Luís. Na campanha presidencial, ele vira a polícia matar um operário em um comício. No dia seguinte, chega à rádio a nota do governador incriminando os comunistas pela morte. O jovem radialista bateu pé, não leu a nota, foi demitido e veio para o Rio de Janeiro, onde – ainda há poucos dias – era visto e reverenciado nas ruas de Copacabana. Uma celebridade da verdadeira arte!

Ultimamente, Ferreira Gullar, que tivera formação marxista e enaltecera Guevara em “Dentro da noite veloz”, criticava - como uma “metamorfose ambulante”- as esquerdas (nem sempre com a nossa concordância!), mas o fazia com aquela forma límpida, clara, que certamente é modelar do que de melhor se escreve em nossa língua portuguesa. Uma pena perdê-lo em plena lucidez, essa mesma lucidez que, agora se sabe, levou-o a renunciar aos apetrechos da ciência que prolongam a vida e o sofrimento.

Vi o poeta uma única vez. Aqui em Juiz de Fora, no auditório do Instituto de Ciências Humanas e Letras da Universidade Federal, Gullar fez palestra sobre sua vida e obra. Falou para professores e estudantes. Não se furtou a ler poemas e a dar sua interpretação para o que escreveu, facilitando a nossa vida....

Anotei, à época (setembro de 2005), sua reavaliação sobre a arte engajada. Questionado sobre a possibilidade de a poesia fazer justiça, o maranhense respondeu que o mérito da literatura não está em ser engajada ou não e que a poesia é em si transformadora, reconsiderando posição anterior quando dissera que quis fazer “poesia dessa matéria humilde e humilhada, dessa vida obscura e injustiçada, porque o canto não pode ser uma traição à vida, e só é justo cantar se o nosso canto arrasta consigo as pessoas e as coisas que não têm voz”.

Sem anotações e com memória privilegiada, o maranhense de cabelos longos e brancos discorreu por mais de hora. Ladeado por doutores da universidade, Gullar arrancou risos quando informou a plateia sobre sua única especialidade - a subversão -, que lhe valeu o exílio na época da ditadura militar.

Gullar não professava religião e se alinhava ao ateísmo. Quanta coragem! Não é fácil declarar-se ateu... E o poeta fazia humor, dizendo da grandeza do ser humano, que teve a fantástica ideia de inventar o próprio Deus. E agora, ironicamente, o escritor divide o noticiário com a tragédia do avião que vitimou os jogadores da Chapecó, tripulação e profissionais da imprensa. Momento de fé, momento de orações...

Fico imaginando o poeta, equivocado que estava, numa fila de gente para obter pouso na eternidade. Gullar, que já se assustara quando se descobriu espírito eterno, mantém a dignidade e sai da fila que leva ao céu, procurando, talvez, paragens mais apropriadas a um ateu. Eis que São Pedro, o poderoso guardião, convoca-o para a seleção do céu:

- Entra, Gullar! Você nem precisa pedir licença.