A torre da Central do Brasil, no Rio de Janeiro, com seu imenso e icônico relógio, fazia parte da minha paisagem diária, eu não conseguia mais reparar nos detalhes, nas nuances do lugar. Idas e vindas, embarcando e desembarcando de um trem, do Centro a Madureira e de Madureira ao Centro, todos os dias. Como as duas pontas do meu destino fervilhavam de gente e de sons, aprendi a ser alheio, como um Buda meditando em meio ao caos. Quem mora no subúrbio de uma cidade em tormenta como o Rio, se esquece da beleza das coisas, do pulsar surpreendente da vida, a rotina é feita de filas, de transportes apertados, de viagens longas e demoradas, do mau humor do próximo e de uma interminável ansiedade pessoal. Some-se a tudo isso o trabalho de balconista numa farmácia, consolando idosos enfermos, vendendo a esperança dos emplastros, ouvindo queixas e dores, tentando me manter imune àquela epidemia de rostos contorcidos por alguma doença.  Não, não é o inferno. Bem-vindos ao meu mundo.

Meu avô costumava dizer que as pernas não servem apenas para andar, elas são pontes entre os olhos e tudo o que existe, mas ignoramos. Saindo do expediente, atravessando o Campo de Santana, sinto um repuxar na minha calça. Sentado no chão, maltrapilho, um menino de uns 15 anos de idade me perguntou se eu tinha um livro para dar. Provavelmente, me viu carregando apostilas embaixo do braço, eu continuava estudando para manter acesa a chama de passar num concurso público.

- Esses livros são do trabalho, não posso dar – respondi.

- Gosto de ler, padrinho. Não tem nenhum livro pra me dar? – Insiste.

- Você fica aqui todos os dias? Estará aqui amanhã?

- Moro aqui, padrinho – ele confirma.

O menino me comoveu e prometi levar qualquer livro no dia seguinte. Chegando em casa, vasculhei gavetas, armários, dispensas e consegui encontrar exemplares antigos, com páginas amareladas, de títulos do Monteiro Lobato lidos nos tempos de colégio. Escolhi doar o “Dom Quixote das crianças”. Orgulhoso por saber que poderia cumprir a promessa que fiz ao garoto, coloquei o livro numa sacola e me entreguei ao sono que me conduziria ao dia seguinte.

Antes das seis da manhã, eu já estava de pé na estação de Madureira, em meio à multidão alvoroçada, todos cumprindo a sina da sobrevivência como se fossem homens pré-históricos saindo à caça. Antes de entrar na farmácia, perambulei pelo Campo de Santana procurando o jovem e o encontrei no mesmo local em que nos esbarramos. Aproximei-me, mas ele parecia não se lembrar de mim, puxei o livro da sacola, entreguei em suas mãos e me afastei. Ao olhar para trás, vi que ele foi para debaixo de uma árvore e folheava as páginas como quem se alimentava de um banquete.

Cumpri o horário e deixei o balcão da drogaria, pronto para enfrentar a viagem de volta ao lar. No caminho, sinto alguém correndo atrás de mim.

- Padrinho. Padrinho. – Era o menino do livro que me gritava afoito.
Interrompi os passos e esperei para ouvir o que ele queria.

- Terminei de ler o livro, padrinho. Pode trazer outro? – Enquanto falava, ele me estendia de volta o livro de Monteiro Lobato.

- Não precisa devolver. Amanhã tento trazer outro. – Respondi.

Outros meninos se aproximaram e perguntaram ao garoto quem eu era.

- Ele é o Dom Quixote.

Um guarda da prefeitura me abordou em tom de alerta.

- Cuidado com esses moleques, eles roubam.

Já no trem, de súbito, o sacolejo dos trilhos me despertou. Por um instante, eu não sabia se o menino do livro era a febre ou a lembrança de um Dom Quixote que vislumbrou, durante jornada, uma semente tão fértil lançada em solo hostil. Sei que todo o meu universo se refez como flores brotando no asfalto. Naquela noite, adormeci abraçado ao livro que pretendia plantar outra vez no próximo amanhecer.

 
Alexandre Coslei
Enviado por Alexandre Coslei em 01/12/2016
Reeditado em 01/12/2016
Código do texto: T5840035
Classificação de conteúdo: seguro