CEMITÉRIO DE IRAJÁ
CEMITÉRIO DE IRAJÁ
Por Estaine Alencar
Em algumas tribos da cultura africana comemora-se com festa, música e comida o sepultamento de entes queridos. Em outras de cultura indígena, estes entes são enterrados com todos os seus pertences: colares, ferramentas de trabalho e roupas. No ritual judaico-cristão de despedida não se faz uma coisa nem outra, não se faz festa, chora-se muito de saudade, faz-se missa e oração. Dos pertences, que são vistos como bens, nada vai para terra, tornam-se herança para os parentes que ficaram e geralmente motivo de briga nos anos seguintes.
No dia 2 de novembro deste ano, o Dia de Finados, nem deu pra dizer: “Até Deus está chorando neste dia pelo nosso querido fulano de tal”, porque o feriado deste ano estava calor com sol forte e não choveu como vinha acontecendo por vários anos consecutivos. Neste ano os noticiários alertaram para que, além de velas e flores, os familiares levassem garrafa d’água e usassem protetor solar ao visitarem seus entes queridos, seja em qual fosse à necrópole da cidade do Rio de Janeiro. Além de tomarem evidentes cuidados com seus pertences, pois estavam havendo assaltos em velórios pela cidade.
Os cemitérios possuem características interessantes, possuem capelas, lanchonetes, barracas de flores, velas, crucifixos, santos e até escritório administrativo. Não é um tanto constrangedor ver pessoas lucrando com a dor alheia? Muitas choram, outras andam juntas conversando e outras até gargalham como se este fosse um local comum. Mas não é? A morte não faz parte da vida? Os coveiros, médicos e sacerdotes sabem muito bem disso. “Nós que aqui estamos por vós esperamos.” Se ouve “A Voz do Mudo”, porém, os túmulos dos cantores Raul Seixas e Clara Nunes são comumente rodeados por fãs no Dia de Finados, que cantam suas músicas e celebram, de forma tardia, de certo modo trazendo um pouco da tradição africana.
O que chama atenção mesmo são os pórticos e as belas sepulturas. As últimas bem adornadas, pois por muito tempo famílias achavam que seus entes queridos teriam um prolongamento da vida dali em diante. Antes os sepultamentos eram feitos em quintais, o morto ainda fazia parte da ordem da casa. Anos depois se passou a sepultar nas igrejas, só para aqueles que eram membros de alguma irmandade, é claro, mas com a proliferação de doenças, esta prática deu lugar aos campos santos ou necrópoles ou cemitérios.
Na entrada de cada um, primeiro os jazigos familiares, imponentes, com construções e esculturas no estilo greco-romano, colonial ou art nouveau para classe alta. Tudo para, além de darem um conforto pós vida para seus familiares, ostentarem riqueza e poder para os olhos de quem ainda podem ver. Indo para o fundo da necrópole, estão para os mais pobres as covas rasas, umas junto às outras e no fim do campo santo, as gavetas.
Todo ano os jornais televisivos percorrem os cemitérios mais famosos da cidade do Rio de Janeiro, como o São João Batista e o do Caju. Neste ano curiosamente falaram no de Irajá. Por quê? Na cidade possuem 21 cemitérios, 13 públicos e 8 particulares. No Cemitério dos Ingleses, a principio, enterravam-se os imigrantes ingleses protestantes, que não podiam ser enterrados em campos santos católicos, hoje é aberto a todas as religiões. O Cemitério do Catumbi possui figuras importantes do Império como o Visconde de Mauá e o Duque de Caxias, além da Associação dos Compositores Brasileiros com a Chiquinha Gonzaga e Ary Barroso.
O São João Batista é conhecido pelas figuras ricas, artistas e políticos. Lá estão os mausoléus da Academia Brasileira de Letras e o da FEB (Força Expedicionária Brasileira), as sepulturas do compositor Tom Jobim, da cantora Carmem Miranda e de políticos desde o comunista Luiz Carlos Prestes ao militar Ernesto Geisel, este último um entre os nove presidentes enterrados no local.
O Cemitério de Inhaúma era onde os judeus e as prostitutas polacas eram enterrados, pois também não podiam ser enterrados em cemitérios católicos. O de Sulacap é conhecido pelos policiais mortos ali descansados, e o do Caju por tantos indigentes como figuras importantes como o dramaturgo Artur Azevedo, o nobre e político Visconde do Rio Branco e o compositor Noel Rosa.
E o Cemitério de Irajá? Por que ninguém fala? Subúrbio carioca, Zona Norte, longe do mar, longe da brisa, longe dos artistas e dos figurões do Império e da República, mas perto do Brasil, ou melhor, perto da Avenida Brasil, que corta tantos bairros pobres-operários e favelas não pacificadas. É o Cemitério de Irajá, com suas covas rasas, gavetas, alguns jazigos familiares de comerciantes de outrora e muita gente que depois de anos de trabalho só tiveram mesmo o corpo triturado de cansaço para oferecer.
Um cemitério é medido em importância pelas pessoas ilustres que foram enterradas ali? Por que a última comoção lembrada foi a do comediante Jorge Lafond, há quase quinze anos atrás, com milhares de pessoas no local. Daí nunca mais se lembrou do cemitério irajaense. Antes os velórios eram eventos para a criançada suburbana, que seguiam os cortejos e iam pelas ruelas adentro alegres, talvez carentes de eventos mais divertidos, mas muita criança que hoje é coroa brincou neste cemitério suburbano tempos atrás.
No Cemitério de Irajá estão enterrados o Seu Ribamar e Dona Orlenzina, um casal de migrantes maranhenses que vieram para o Rio de Janeiro em busca de oportunidade de vida melhor e que conseguiu criar com dignidade seus quatro filhos. Lá também estão o Messias peixeiro, o Carlão taxista, a Tia Marluce professora primária, o Jair pedreiro e a Tia Megue do tempero nordestino.
Também está Tia Rosilda, carioca, filha de um pintor de paredes e um costureira vindos de Alagoas, que se conheceram no enterro da mãe dela, na época em que visitar campos santos eram passeios. Casaram-se e migraram para o Rio de Janeiro. Tia Rosilda trabalhava no almoxarifado de uma empresa de aparelhos auditivos. Humilde Cemitério de Irajá, longe do mar, perto do Brasil, ou melhor, da Avenida Brasil.
Eis que falece o ex-jogador de futebol Carlos Alberto Torres, o capitão do time que conquistou o tricampeonato da Copa do Mundo e que levantou a taça em 1970 com a considerada melhor seleção de futebol de todos os tempos. Ele era famoso, além de ex-jogador também era comentarista esportivo na televisão, seu corpo poderia ter ido pro São João Batista, Catumbi ou do Caju, junto com os artistas, políticos e pessoas abastadas, mas não, seu corpo foi enterrado no Cemitério de Irajá. Os repórteres estavam suando com o sol forte e fora do ar-condicionado reclamando porque o cemitério era tão longe da zona sul e tão perto do Brasil. Não poderia ter sido um pouco mais perto?
Bem, o enterro de Carlos Alberto Torres, o capitão do tri, no Cemitério de Irajá, longe do mar, mas perto do Brasil, ou melhor, da Avenida Brasil, foi pra lembrar que o Jair pedreiro, o Messias peixeiro, Tia Marluce professora, Seu Ribamar, Dona Orlenzina e Tia Rosilda também foram campeões do mundo.
Estaine Alencar
11/2016