SAGA PLATÔNICA DE VIVER E PARIR

Tarde mormacenta. A vida é lenta, modorrenta. Insetos movimentam-se lentamente. Sopapo, o gato, escava a terra e cava sua cova de dejetos e urina. Johnny, o cão, detidamente deitado sobre as patas, move os olhos preguiçosamente. Folhas verdinhas de verão e clorofilas anseiam pelo orvalho da madrugada. Há em mim um cochicho de que, em breve, o vento morno solfeje o poema da fertilidade. E o meu dengoso coração esvazie suas carências de mitos, equinócios e solstícios. Há urgência no bico dos pássaros saltitantes, enquanto filhotes, desesperadamente, abrem as famintas gargantas à espera do bico da mãe-pássaro, que, humildemente, cumpre o seu singelo ofício. Na natureza, cada um sofre a saga de viver e parir. O poeta, impotente, empapa a mão ávida e inquieta de contemplações, suor e anseios. O louva-a-deus saúda a soturna oração com estridência, confidenciando a noite sob as pestanas do dia. Suores de artérias e veias catalogam que a passagem é um exercício paciencioso entre o lapso de viver e o de finar-se. E o papel, inerte e mudo (que um dia foi árvore) é a lousa da poética circunstancial, coberta de húmus, sementes e musgos, inexoravelmente. Lá em cima, silenciosamente, estrelas aninham-se, letárgicas. A lua, alvacenta, boceja a sua pupila de prata. Um rato bem nutrido e de longo rabo se escafede às barbas de Sopapo, neste alumiando pupilas ágeis de surpresas. O universo conspira a favor da noite e do poema anônimo. O louva-a-deus, de novo e longamente, saúda a ave-maria. O mesmo espanto de milênios domina a luz esmaecida.

– Do livro A BABA DAS VIVÊNCIAS, 1978/2016.

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