Neurose matinal
Neurose matinal
(*) Texto de: Aparecido Raimundo de Souza.
(**) Sobre este trabalho.
ERA UM CÉU NEGRO, horrendo e recalcado, pairava indócil e labrusco, sobre a cabeça da Infeliz Criatura com presságios aterradores. Abestado, preso ao chão, e pior, acorrentado ao impreciso do acervo de mínimas coisas não realizadas, de sonhos não concluídos, de caminhos não percorridos, o Boçal não conseguia distinguir o certo do errado, o errado do verdadeiro, o mal do não pernicioso. Tampouco vislumbrar tempo bom à frente dos seus tristes olhos. Sofrimentos expiatórios o embaraçavam. Em resumo, sabia, de antemão que seu exílio penoso, sua vida cotidiana e pacata, se consubstanciava, exclusivamente, num curto esforço para morrer com dignidade. Nada mais que isso. Partir desta para melhor, sem pecados, alma pura, quando a hora derradeira se abeirasse ao seu derredor.
Abaixo do céu amulatado, e sombrio, uma nuvem carregada de escuridão compactada, não treguava, não dava um tempo, por menor que fosse. Do mesmo modo, impermitia que a abóbada celeste, em todo seu esplendor, se expandisse e se mensurasse diante da sua mudez esquelética.
Para aumentar o medonho da sorte ingrata, triplicando o contato maléfico com seu corpo em frangalhos, ventos contrários sopravam impiedosos. Uivavam com fúria descomedida. Davam a impressão de, a qualquer momento, derrubar tudo por terra, inclusive os acalantos mais tenros que carregava carinhosamente num cantinho oculto do peito.
O dia turbado e escurecido pela obumbração de enorme vulto melancólico, se prolongava em horas tristes. Os minutos se arrastavam indefinidamente. Tudo se tornara uma solidão só agredindo a alma, espancando a tênue esperança que, por algum motivo inexplicável, insistia em permanecer e não só permanecer, mas resistir às intempéries daquele quadro lúgubre e desolador.
E ele, Idiota e infeliz, na sua imbecilidez, atribulado no seu desterro, o receio temoroso estampado nas feições esfingéticas, na convizinhança com outros sobressaltos, os músculos tesos e atados, a cabeça em farrapos, o coração forrobodeando com batidas irregulares, andava pra lá de desorientado, sem saída, à mercê do acaso, algemado, manietado, encadeado nos próprios pensamentos. Se sentia, o Zé Coitado, numa espécie de constrangência ímpar, sem simetria, como um ninguém, um mísero desafortunado diante da tiranização estrólica que o seu agora lhe oferecia.
O céu taciturno, pretumado, continuava inteiro na sua entediosa escuridade. Insistia em não dar brecha. De fato, não dava. A nuvem incômoda, por seu turno, se duplicava. Não oportunava lequear uma fenda, uma porta de escape, que delimitasse, sequer, as pretensões de melhorar aquele velório de experiências austeras e inexoráveis. Os ventos, como de comum acordo, vociferavam numa demonstração de imparcialidade. Por derradeiro, o dia... o dia se subjugava se confrangia, se chumbava em grilhões de previsões e pressentimentos de vindouros empedernidos, perversos, ressentidos talvez, de perspectivas mensuradas com infinitos poderes de destruição.
E o Mané, sem Saída, esperava, esperava... Talvez - pensasse com seus botões -, quem sabe o sol dissipasse a nuvem, acalmasse os ventos... talvez o astro rei com a sua magnanidade se assoberbasse e levasse para longe aqueles taciturnos e desolados momentos de brusca invernia e dorida agoniação.
Quem sabe, no seu lugar recolocasse a paz, não só ela, de roldão, a alegria em sua melhor forma de expressão. Zé Sofrido queria, sobretudo, seu chão de volta, seu espaço sereno, inteiro, fascinante, versátil. Objetivava enxergar além do verdugo inoportuno, detalhar uma moldura que ornasse o painel da sua existência medíocre, em sintonia com a fotografia mágica, uma fotografia (não importava se colorida ou em branco e preto), um arquétipo que não esbugalhasse seus recatos de menino desesperado, sem mãe, sem casa, sem Deus. Quem sabe, algo de agradável acontecesse e o destino deixasse de destruir seus esforços benfazejos.
De repente, diante da sua perplexidade natural, amolecendo as fibras emotivas, eis que o milagre encantadoramente aportou. Uma elucubração sábia se ancorou se fundeou, se fez manifesta. Assomou assim do nada, vasto e colossal, o imensurável. Com a chegada dele, tudo se transformou. O céu deixou de ser lôbrego, disforme, para se revestir (como num acender de uma lâmpada), num azul bucolicamente inexplicável. A nuvem carregada, alimentada por invencível força motriz, se viu devorada pela varinha de uma fada encantada. Sua escuridão se rompeu, se arrebentou se esfacelou, culminando, filtrada, numa energia abissal, como se milhões de pequenas ondas eletromagnéticas se propagassem como fótons pelo espaço e se acendessem a um só tempo.
Aos ventos agressivos, medida idêntica também restou imposta. Uma disciplina de resignação e humildade se fez reinante. Por assim, os ares revoltos se acomodaram, se arrumaram, se apaziguaram. Tomaram formas de brisas soprando amenidades. O dia... bem o dia se radiantou formoso, glorioso, pungente, sem manchas, sem nódoas. Delongou ainda, mas, agora, dando a perceber, que o relógio do tempo mudara as horas, reformulara os minutos, estabelecera os segundos, engatado, sofreado a um poder superior e inimitável. O sobrenatural invisível de um porvir cheio de glórias e alegrias surgiu magnífico, intocável, belo, agigantado, envolvido num halo bendito... quem sabe, talvez, travessuras do Sublime Emissário e Senhor de todas as coisas.
Zé Ninguém (coitado do infeliz!) se exortou dessas mazelas, se descabelou, se inflamou. Ainda sem entender o que ocorria a sua volta, o Abestado sorriu destrambelhado, se alegrou, se formoseou, se sublevou se atiçou, se coloriu. Não contente Zé bosta chorou de emoção, se avivou, se adornou, se afobou. Nessa letargia gritou, esperneou, reagiu. Tinha consciência, que a partir daquele momento poderia viver livre e pundonorosamente como senhor de si e de seu destino. Entrementes, quando pensava em se ajoelhar e agradecer, levado pela excitação do copo muito tempo vazio, enchido, agora, pelo líquido generoso do vinho da Esperança, o desgraçado, num irrefletido de otimizada euforia... soltou um peido enorme... depois outro, e mais outro...
A fedentina desses traques (salas e quartos, nariz à dentro), se espalhou. Temendo cagar na cama, sujar o lençol, e, de contrapeso, fazer feio à namorada que dormia de conchinha, o Infausto desastrado, apavoradíssimo... suando em bicas,
A C O R D O U.
(*) Texto de Aparecido Raimundo de Souza.
(**) Escrito em Maldonado, Punta Ballona, Pulta del Este - Uruguai. Outubro de 2016.
Postado por Carina Bratt.