Show do Rei

O Rei estava atrasado. O estádio, lotado, ansiava sua presença. Arquibancadas inquietas murmuravam descontentamentos. O calor no interior do ginásio era insuportável. Há meses não chovia em Brasília. A longa espera aumentava o calor, a secura e a sede. Os vendedores de água "lavavam a égua" com água, cerveja e refrigerante. O atraso do show vinha a calhar, era só contentamento e oportunidade. Olha a água mineral! Quatro reais! Tá acabando! Mate sua sede! Haja vender água pra apaziguar a sede de muitos e a raiva de outros. Os comentários se multiplicavam à boca pequena. Já era hora de começar! Tamos esperando há duas horas... Que nada, nós chegamos aqui às 6 da tarde, pra pegar um lugar de frente ao palco. Falta de respeito com os idosos! Nós não cumprimos o horário? Os ingressos custaram o olho da cara, custava um pouquinho de pontualidade? Isso é desrespeito!

O pessoal das cadeiras especiais chegava aos poucos, sem pressa. Parece que sabiam do atraso. A plebe se apertando nas arquibancadas, engalfinhando-se pelos melhores lugares. Lá em baixo, junto ao palco, as cadeiras especiais, de 700 reais, esnobavam classe e elegância, saboreando bebidas geladas, servidas por garçons e suas luvas brancas, um luxo! As arquibancadas duras doíam as bundas e endureciam caras e corações. Alguns esboçavam apupos medrosos. (Não é todo dia que se vaia um Rei). O clamor surdo aumentava, encorajando os mais tímidos. Um grito mais forte, um rosnado de indignação, assovios finos, agudos, cada vez mais insistentes. Sempre mais fortes. Finalmente, as vaias. Ruidosas, despudoradas, rancorosas. Como olas, iam varrendo as arquibancadas. Uma catarse coletiva, incontida.

Nada do Rei. Pra quê pressa, gente? Rei é rei, plebe é plebe. Quem pode, atrasa. Quem não pode, espera. Uma lógica irrefutável. Um furor de indignação irrompia na turba. Os mais enfurecidos já xingavam o Rei. Alguns FDPs já se ouviam, para espanto das velhinhas.

A produção manda apagar as luzes do ginásio. Cessam as vaias. A orquestra executa os primeiros acordes de “Como é grande o meu amor por você”. Empolgação nas cadeiras, nas arquibancadas, nas escadas. Delírio. Velhas e moças em frisson. A indignação murcha, desaparece, dá lugar a um coro uníssono. A orquestra segue em frente. Toca a canção inteira. As fãs vão atrás com suas vozes e emoções. Lá das coxias, o Rei sorri complacente. A platéia já está dominada. “Hen, hen, hen! Esse povo me ama...”.

Finalmente, o Rei dá o ar de sua graça. Manca levemente em seu impecável terno branco, toma o microfone e solta “emoções” pela milionésima vez. Mas é como se fosse a primeira. A platéia cai em êxtase, derrama-se em emoções. Algumas velhinhas choram, lembrando emoções antigas, dos tempos em que o Rei ainda era um príncipe que passeava de calhambeque.

O público segue em delírio. Não há mais raiva nem indignação, só júbilo e aplausos. As emoções absolveram o Rei, sob as bênçãos de Lady Laura.

Domingos Sávio ferreira
Enviado por Domingos Sávio ferreira em 25/11/2016
Reeditado em 25/11/2016
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