SUIS AUCTOR?*

 
Essa expressão latina me faz lembrar uma injustiça de que fui vítima ainda adolescente. Esteve sepultada no esquecimento até que, remexendo velhos papéis guardados ao longo tempo, encontro o seu esqueleto: um trabalho final para a disciplina Lieratura, quando aluno do primeiro ano do curso científico do Colégio Alberto Torres.

Voltemos a março de 1959. Acabo de completar 15 anos. Estou muito entusiasmado com a perspectiva de estudar Literatura.  O professor que já me ensinara Latim nas quatro séries do curso ginasial é um dos mais preparados do corpo docente. Ex seminarista, conhece o vernáculo muito bem e é dotado de uma cultura extraordinária. Ninguém melhor para conduzir a disciplina. 

Na primeira aula, como de praxe, foram expostos o programa, as recomendações de leitura e o livro texto a   ser adotado. Recordo que teríamos uma visão panorâmica das Escolas  Literárias, com ênfase nos autores brasileiros. Arcadismo, Romantismo, Realismo, Parnasianismo, Simbolismo e Modernismo eram as Escolas a serem estudadas. Na oportunidade, fora-nos informado que a última prova mensal do curso seria substituida por um trabalho de casa. Cada aluno faria uma poesia, de livre escolha temática, em qualquer gênero poético. 

Eu não me cabia no entusiasmo e na vontade de corresponder à expectativa do professor. Queria mostrar ter assimilado os seus valiosos ensinamentos sobre a arte de composição em verso. Caprichar na métrica, na riqueza de rimas e, principalmente, no ritmo seria fundamental.

Quanto à temática, passei uns dias meditando, até perceber que no jardim lá de casa as rosas eram mais apreciadas pelos visitantes do que as margaridas. Fiquei com aquilo na cabeça até imaginar um diálogo entre as duas flores, que deveria ser culminado com uma lição de moral.

Definida a temática, lembrei-me de reler alguns poemas de autores famosos que falavam de flores, a exemplo de Castro Alves e Vicente de Carvalho, em busca de um modelo para me espelhar. Fixei-me no poema de Vicente de Carvalho "A Fonte e a flor", composto de oito estrofes em redondilhas maiores impecáveis. 

O entusiasmo era tanto que comprei pelo reembolso postal um minidicionário de rimas para ajudar na composição. Tinha aprendido que as rimas ricas são aquelas entre vocábulos de diferentes categorias gramaticais.

Assim comecei o meu labor que durou aproximadamente uns dois meses. Era como se estivesse num laboratório buscando os vocábulos certos para compor os versos idealizados. Fui um dos primeiros a entregar o trabalho cuja primeira página ilustra esta crônica. Esperava, ansioso, o dia de receber as notas. Para minha surpresa, foi a nota mais  baixa da classe (3,5), com três observações exaradas em vermelho que me deixaram angustiado. A primeira, um ponto de interrogação após a palavra "Fábula" que antecede o título do poema.  A segunda, a expressão latina que dá título a esta crônica, pondo em supeição autoria dos versos. A terceira, já na página 2, outro ponto de interrogação após a minha assinatura, ao fim do poema. 

Quanto à primeira observação, hoje percebo que o professor tinha razão, porquanto a Fábula deve ter como personagens animais e não plantas. Contudo, a segunda e terceira observações foram as que mais me deixaram ferido. Afinal, depois de trabalhar tão duramente na  construção do poema, não era justo o professor duvidar da minha autoria sem apresentar sequer uma prova do suposto plágio. Reclamei, obviamente, ainda que naquele tempo o "magister dixit" prevalecesse na relação entre professor e aluno.

 
Passados 57 anos do evento, não me recordo bem do desfecho. A julgar pelos riscos vermelhos sobre a nota que aparece no canto superior esquerdo da folha, é provável que o professor tenha se convencido da minha inocência. O fato é que não fui reprovado na disciplina.

Apesar da decepção, não guardei nenhum rancor do professor. Aprendi muito com ele e reconheço que as suas aulas foram muito importantes para minha formação literária. . Com ele aprendi a gostar de Paul Verlaine, fascinado pelo soneto Canção de Outono e tantos clássicos da Literatura. Olhei mais para esse lado.

Hoje, reencontrando a velha e desbotada folha com o meu primeiro exercício poético, me pergunto por que teria o mestre duvidado da autoria, sem ao menos apresentar uma prova.  Se naquele tempo já existisse o Google, certamente ele não teria feito isso e eu não estaria hoje contando a história.

Eis o poema, na integra:


AS DUAS FLORES

Vivendo na mesma borda
Cresciam as duas flores
Uma mui bela e calhorda
Outra débil e sem odores

A primeira, nobre rosa
Das mais lindas do jardim
Era soberba e orgulhosa
E sempre falava assim:

Não vês como sou ramada
Cheia de encanto e esplendor?
Tal como rosas douradas
De inestimável valor

Com o meu soberbo ramalho
Entre vós sou eu galã
Sou preferida do orvalho
Que me beija toda manhã

E tu, pobre margarida,
Quem poderá te adorar?
És uma flor retraída,
Quase sempre a mais vulgar.

A falação prosseguia
Cada vez mais animada
A margarida sorria
Ouvindo tudo calada

Nisto surge das folhagens
Um displicente infante
Com gesto quase selvagem
Fita a nobre flor pedante

Aproximando-se da alteza
Arrancou-a de seu galho
Despetalando a princesa
Transformando-a em migalhos

A margarida tremia
Vendo esta que há pouco
Era uma rosa em botão

Horrenda e esfarrapada
Mutilada, já acabada
Espalhada pelo chão!

Depois de muito chorar
A margarida pensou:
É certo que sou vulgar

E também não tenho odor
Mas vivo bem sossegada
É melhor viver assim

Que ser bela e desejada
Soberba, esguia e ramada
E ter este triste fim.

_________________
* Tradução do Latim: O SEU AUTOR?