Assim ou ... nem tanto 72
A Dor
Era sempre noite quando a solidão mais doía. Um desconforto, um não saber onde ficar. Quarto, sala, varanda. Para lá dos vidros sem cortinas, a rua ainda rumorejava vozes apagadas, uma luz velada, o nevoeiro leve a descer. Uns travões na calçada, um assobio, o palavrão que feria o ouvido. O sofá, o jornal, as palavras cruzadas e a dorzinha lá, ferrada, insistente, quase visível a magoar-me por dentro. Chega. Não aguento deixar-me moer de tempo e tédio. Bati a porta ao calor e enfrentei a noite para caçar. Todas as potenciais conversas, toques, beijos, línguas, peles, corpos e sexos passaram sem me ver. E a dor gritava por dentro a premência e um suor gelado começava a perlar a fronte. Ali, no cais vazio, os barcos no balouço das ondas, o cheiro acre do rio, o rumor longínquo dos carros. No banco um vulto embiocado num casaco cinza misturava-se aos cheiros, ao frio, à neblina. Uma ponta de fogo respondia à aspiração do cigarro. - Posso? Sentei-me. É daqui? - Não se vê logo que sou de longe e só vim pescar, apanhar frio, constipar-me, espalhar onde fosse possível a sede e a conversa? - Conseguiu? – Não sei, respondeste. Tenho o peixe a morder o isco, a puxar a linha, a fazer tudo para me arrastar para o rio e eu não sou Tágide. Vamos? Fomos. Afinal nem era rameira, nem desiludida, nem suicida, nem perdida. Tinha uma dor por dentro, uma insatisfação, um não saber o que fazer em casa, um não aguentar a solidão.