Justiça "versus" contradição
Para compreender a reflexão que esse texto propõe, vamos considerar uma constituição brasileira hipotética, na qual não há legislação a respeito de achar dinheiro ou qualquer outra coisa de valor na rua, algo que já aconteceu com muitas pessoas e pode acontecer com qualquer um. É importante também, para refletir sobre a questão trazida pelo texto, não se basear na legislação atual sobre achados na rua, considerando somente os aspectos morais, éticos e os princípios individuais em torno da questão.
Maranhão, Nordeste brasileiro. Era um dia quente, como de costume e João saia de casa se despedindo das filhas e da mulher. As crianças comiam um prato fundo de farinha com água suja, uma refeição que ainda é comum no interior daquele estado, que ainda sofre de fome e miséria. João, trabalhador, fazia bicos pelos interiores do Maranhão e, esporadicamente, arrumava algum trabalho na capital - São Luís. O problema era a angústia que ardia no peito, todos os dias, ao sair de casa. Deixar a família passando por dificuldades, ir trabalhar bem longe e sequer ter certeza de que conseguiria algum dinheiro era a luta diária de João. Sem dúvida, a migração pendular era um problema e, quando o bico era na capital, o homem nem voltava para casa - teria de dormir em algum canto no caminho. João nunca estudou, mas também nunca roubou, nem matou e, apesar das más influências que o tentaram a entrar para o crime, desde cedo, ele sempre priorizou os conselhos de seus pais e fora ensinado: "Filho, se achares dinheiro ou qualquer coisa de valor dando sopa por aí, não tome para ti! Se estiveres na escola, entregue para a professora. Se estiveres no shopping, leve para o guarda mais próximo. Se estiveres na rua, pergunte para as pessoas que por ali passarem, se o tal objeto não lhes pertence, pois aquilo não é teu e não deves tomar para ti aquilo que não lhe foi dado e não fizestes por merecer." Essa é uma breve ilustração dos valores que foram ensinados a João em casa e na igreja, instituição que o homem frequenta desde pequeno, de domingo a domingo.
Em São Luís, sentado na parada de ônibus, João esperava o transporte para um bairro distante, onde ele iria trabalhar como pedreiro. Logo atrás da parada, havia uma escadaria de uns 5 degraus, que levava até uma recepção bem arrumada, cheia de tapetes e sofás dos mais caros e refrigerada por vários aparelhos de ar-condicionado. João olhava para a recepção de rabo de olho e avistou uma maleta encostada no primeiro degrau. Varreu os arredores da escadaria com olhos rápidos e não havia um suposto dono daquela maleta, que parecia daquelas que têm senhas e fechaduras. Mais de 30 minutos se passaram e o ônibus não apareceu, tampouco apareceu o dono da maleta. Curioso, o homem caminhou como quem não quer nada até a escadaria e, para não dar cabo de que fora até ali somente para bisbilhotar a maleta, entrou na recepção e pediu um copo d'água, o qual lhe foi dado sem necessidade de muita espera. Ao descer aqueles poucos degraus, João olhou para esquerda e direita. Não havia ninguém. Ele pegou a maleta e sentou-se na parada de ônibus, que parecia mais um banco de praça, haja vista que não passou por lá um ônibus sequer, em mais de duas horas. Nervoso, João se perguntava o que tinha naquela maleta, que parecia pesada por demais. Haviam botões para senha, mas a maleta estava destravada. Ao abrir, o susto enorme e o coração quase que saindo pela garganta: malotes de dinheiro enfileirados como dominós em uma caixa recém comprada. Somente notas de cem. Haviam ali milhões de reais, indubitavelmente. Era a solução para a vida caótica daquele homem, que poderia agora comprar casa, carro e, principalmente, viver em paz e com estabilidade financeira, ao lado de sua mulher e de seus filhos. Com os olhos fixos naquele montante de dinheiro, João pensava: "Estou diante de um conflito moral! Esse dinheiro não é meu, mas sem dúvida é a solução para todos os problemas que maculam minha vida. Sonho dia após dia com meus filhos correndo em um jardim, se divertindo com os brinquedos que tanto me pedem. Sonho com eles estudando em boas escolas e se tornando grandes profissionais. Vejo as lágrimas de felicidade escorrendo dos olhos de minha mulher, orgulhosa da família que construímos. Mas não posso tomar esse dinheiro para mim, pois ele não me pertence. Lembro com clareza das palavras de meus pais - se não fiz por merecer e nem me foi dado, esse dinheiro não é meu. Eu jamais passaria por cima dos ensinamentos dos meus pais, que me guiaram pelo caminho da honestidade." A partir disso, João não pensou mais em nada. Ele não teve dúvidas e não hesitou. Fechou a maleta, levantou-se do banco sujo da parada de ônibus e perguntou para os que lhe acompanhavam naquela espera prolongada: "Licença, é de alguém aqui?", enquanto levantava a maleta premiada e a mostrava para as pessoas. Todos negaram. João voltou à recepção e deixou a maleta com a mulher que lhe entregara o copo d'água: "Acho que alguém esqueceu essa maleta ali na escada, dona!" , e tornou, sem questionar a própria ação, a esperar o ônibus na parada, para trabalhar na obra, suar a camisa e tentar chegar em casa no mesmo dia. Olhando pela janela do ônibus, no caminho para o tal bairro distante, João começava a pensar no ocorrido e lembrou: "Quando alguém for tentado, jamais deverá dizer - Estou sendo tentado por Deus! - pois Deus não pode ser tentado pelo mal e a ninguém tenta. Cada um, porém, é tentado pelo próprio mau desejo, sendo por este arrastado e seduzido." Para ele, Deus não o estava tentando, mas cabia a ele, escolher deixar-se arrastar pelo mau ou seguir o caminho da honestidade. Esse foi o argumento que levou João a devolver aquela maleta.
Agora não se trata mais de João. Agora era Joaquim, sentado naquela parada de ônibus. Joaquim também tem mulher e filhos passando pela mesma situação que a família de João. Ele também foi criado cercado de valores passados por sua família e pela igreja. O discurso dos pais de Joaquim que mais o marcou foi o seguinte: "Filho, jamais duvide da presença de Deus na sua vida. Nunca questione as decisões de Deus ou diga que Ele o abandonou. Se estiveres passando por tempos difíceis e tiveres que transpor problemas intransponíveis à primeira vista, lembre-se que Deus nos dá o sofrimento até onde aguentamos, pois Ele nos conhece perfeitamente. Esse sofrimento é necessário para que possamos evoluir e sempre antecede tempos de felicidade e calmaria."
Ao repetir os passos de João - avistar a maleta, subir a escadaria da recepção, pedir o copo d'água, pegar a maleta discretamente e tornar a esperar o ônibus na parada, bem como abrir a maleta e checar o conteúdo que a fazia pesar tanto -, Joaquim também teve seu momento de reflexão: "Aqui está! É como meus pais me disseram! Deus nunca me abandonou. Ele me conhece e sabe o sofrimento pelo qual venho passando. Ele só me deixou sofrer a dose exata de minha resistência e hoje Deus me trouxe o período de felicidade e calmaria que tanto esperei, seguindo sempre os meus princípios de justiça, bondade e honestidade. Obrigado, meu Deus, finalmente poderei viver em paz ao lado de minha mulher e dos meus pequenos. Voltarei pra casa com esta maleta abençoada e mudarei por completo a minha vida!" Joaquim chorava de emoção, olhando pela janela do ônibus no caminho para casa, emocionado com o milagre que Deus havia operado em sua vida. Esse foi o argumento que levou Joaquim a tomar aquela maleta para si.
Quem agiu corretamente? João ou Joaquim? As pessoas enxergam o mundo de formas diferentes. Nem sempre essas formas diferentes são uma errada e a outra certa. Nem sempre há uma só forma correta de ver as coisas e se posicionar diante delas. Contudo, existem pessoas contraditórias, que veem cada caso de uma forma, como melhor lhes convêm. Essas pessoas julgam uma situação de uma forma para uma pessoa e de outra para outro indivíduo. Essas mesmas pessoas, julgam uma ação moralmente errada com generosidade quando foram elas que a realizaram e com mão de ferro quando foram os outros. Essas pessoas sim, estão erradas. Elas são sujas e agem a partir de visões obtusas da realidade, modificando os próprios posicionamentos de caso para caso, a fim de obter benefícios para si. Essas pessoas estão completamente erradas e não passam de hipócritas, egocêntricos e aproveitadores. João e Joaquim estão os dois, cobertos de razão.
Não seja contraditório! Tenha pensamento crítico e se posicione diante das questões morais que nos cercam todos os dias. Pense a respeito de cada caso, tendo como base sempre os mesmos princípios e o mesmo senso de justiça, seja qual for o indivíduo em questão e ainda que seja você o sujeito. Ninguém é melhor do que ninguém! Carregue essa ideia consigo e não só repita essa frase, mas aplique o significado dela nas suas ações e em seus julgamentos. Não fuja dos problemas nem distorça a realidade de modo que ela conspire a seu favor. Seja sempre justo.