Assim ou ...nem tanto 71
O retrato
Nasceu de uma linha caprichosa largada por um lápis macio que ia, vinha, voltava, que mal se via ou, intensa, se riscava, forte, decidida, lancinante. No começo era só e apenas uma linha. A complexidade do retrato ainda não surgia e dir-se-ia que o artista, tomado de hesitação, olhava muito e não sabia que ponta, que traço, que risco haveria de fazer para representar a emoção. Sim, tudo ali era emoção, uma verdade estranha, dissonante para os outros, magnífica para si mesmo. E riscava, apagava, recomeçava. Incapaz de traduzir a beleza do olhar, decidiu não correr o risco de desenhar logo os olhos e passou ao nariz, perfeito, simétrico, doce, pequeno. Era lindo aquele nariz e difícil de dizer com traços de grafite por isso, muito leve o assinalou, tão leve que a um metro se não via. Depois a boca, carnuda, húmida, vermelha, quase beijo, quase carne, quase fogo, quase palavra que, tímida, morria sem som no começo do encantamento. E por isso, incapaz de riscar a maravilha, a deixava assim, sem olhos, brevíssimo nariz, boca ausente. E o lápis traçava a linha caprichosa que ia, vinha, voltava e tremia. Emoldurado pelos cabelos saídos de tantas tentativas o rosto belíssimo ficou totalmente ausente. E o modelo, o suporte da paixão, imóvel, extenuara-se na postura, na intensidade do clima, na secura dos lábios mudos do pintor. Puxou a si a blusa de renda, ergueu a sobrancelha e declarou erguendo-se: - quero ver-me. E não se viu.