Ode ao domingo
Era domingo, desses dias em que os sentimentos estão aflorados pelo simples descanso do corpo e trabalho dos sentimentos. Os domingos de tarde sempre são celebrados pela preguiça dos que almoçaram e o sono dos que deitam ao sofá, mas entre esses sentimentos há a curiosidade sobre os domingos de outros, na rua, das varandas, das praças. Vai ver que aquele multiempresário não está na calculadora, mas recostado em sua rede barata babando no tecido trançado pelo menino de 14 anos que se deita sobre a mesma rede em sua casinha de praia ouvindo o quebrar da onda. Só o domingo traz à tona o que de mais humano há em cada um de nós. O domingo é o dia em que nos permitimos ser ao invés de parecer... No domingo se grita, se dorme, se bebe, se dança, se pensa, se sente, se é!
Como quem não tinha nada melhor a fazer, fui absorvido numa análise um tanto quanto enxerida do cotidiano dominical de uma senhora que morava num prédio a minha frente. Despretensiosamente fui observar da varanda o mundo lá fora, ouvi sinos da Igreja que angariava fieis preguiçosos da feijoada, ouvi o brega ensurdecedor daqueles que ainda não tinham comido a feijoada, senti o cheiro que vinha da minha cozinha... Comeríamos feijoada hoje. Esgueirei o olhar e a atenção para o apartamento a minha frente, supus que era o 7º andar, me questionava se era o 701 ou 702, fato esse que me intrigou, pois aquela senhora era ímpar, e saber seu apartamento podia me confirmar isso.
Algo em suas vestes logo me chamou a atenção, sou acostumado a vestir-me de domingo. No sábado tomo um bom banho antes de deitar, visto a roupa mais rasgada, confortável, caseira, surrada que tenho, durmo um sono enfadonho, fadado à eternidade, babo, se ronco não sei acordo... Hora do almoço? Hora do café? É mais um domingo, desses que pedem uma roupa leve. O sábado é revestido de juventude e euforia, mas o banho do sábado a noite separa-me das vestes pomposas e aí me visto de domingo, pois domingo pede calma, nostalgia, roupas frouxas, pois basta o aperto do cotidiano.
Aquela senhora tinha algo mais, ela não vestia sua camisola maltrapilha, nem mesmo um short folgado ou uma dessas camisas de blocos carnavalescos ou vereadores desconhecidos... Ela estava em um belo vestido vermelho, muito bem acinturado, daqueles que o Sol do domingo nunca tinha ousado ver. Ela estava apertada, de um jeito que eu só sentia ao lembrar aqueles que nesse momento eu não podia abraçar, pois ela era o abraço da distância, ela era o vermelho vivo de um sentimento pulsátil, a irreverência da lembrança carnal.
Afora sua roupa chamativa, a senhora tinha maquiagem muito bem feita, tudo indicava que era dona de si, e se arrumava como alguém que espera um ente querido, um amor, um sábado e seus caprichos, o relógio voltar, o calendário adiantar. Quis olhar sua mesinha de cabeceira e ver detalhes de sua vida mundana que nem me interessavam, mas fui tolhido pelo embaçar de meus olhos, estava ainda sem os óculos. Apoiado sob duas lentes voltei ao 7º andar (?) do prédio vizinho e sua dona, ela que agora carregava talheres, dois pratos e um vaso com uma rosa. Sim, ela esperava alguém, os talheres arrumados, a toalha de mesa estendida, os pratos e seu cuidado apontavam para um almoço de domingo ao lado de alguém especial. Senti todo seu amor em cada detalhe, senti sua angústia ao olhar para o relógio, sua força de vontade ao vencer a tradição dos domingos e vestir-se de ousadia.
Ela agora andava mais rápido, talvez fosse se aproximando a hora da chegada, carregava consigo um porta retrato, nele havia com toda certeza uma lembrança, um lugar, um tempo, uma hora, um dia... Quem sabe na foto não era um domingo? Um almoço de família? Uma conquista? Uma memória... As fotos trazem para mim uma esperança na repetição dos momentos, uma tentativa humana de vencer o tempo e seus esquecimentos, a imortalização de sentimentos. Fotos são como aquela senhora, a ousadia de sentir num domingo qualquer, o cuidado em nunca deixar de lembrar que fomos felizes, vitoriosos, amados, unidos, humanos. Para minha estranheza, ela posicionou o porta retrato em cima de um dos pratos da mesa, saiu em busca de outro objeto, voltou com um aparelho de som. A partir de então eu imaginei o que poderia estar tocando, as trilhas sonoras de domingo são regadas a pagode, samba, MPB, mas aquela senhora não era comum, penso que ela ouviria um tango argentino, um bolero, ou quem sabe uma dessas músicas baratas que emocionam os ébrios em qualquer esquina.
Passada meia hora de certa tensão e monotonia no apartamento fui chamado a almoçar. Ri, comi, repeti. A feijoada tem regado todas as mais divertidas e nostálgicas conversas em minha família, sob o fumegante feijão preto e a agregadora farofa podemos relembrar cada viagem feita, cada sentimento banal, relembrar que apenas o domingo permite essa reunião plena, essa retomada dos sentimentos que cultivamos, sejam eles pela família na mesa ou no descanso pós-almoço que nos proporciona um verdadeiro divã emocional. É no domingo que eu sou abatido pela emoção, não sei se pela simplicidade de minhas vestes físicas ou pela vulnerabilidade de vestes emocionais, mas decerto o domingo torna o amor mais vermelho, a tristeza mais azul, a felicidade mais plena, a empatia multicolorida.
É tempo de sesta, sentir o peso de a comida chegar ao seu destino é ser abatido pelo mundo, é ficar sonolento com a brisa leve que bate no rosto ainda sujo de comida, é passar a sobremesa, pois estamos repletos do almoço e o domingo é doce por si só. Fui receber o vento da varanda e dar meu último olhar àquela senhora. Ela estava comendo, não dava pra saber do que se tratava, pouco importava, pois percebi em seus olhos marejados o despejar de lágrimas que escorriam os olhos maquiados e caíam sorrateiramente na comida que podia ser ruim, insossa, podia até não ter comida, visto que o vazio não estava no estômago. A pompa da mesa foi substituída por um tempestuoso silêncio.
Notei dois guardanapos ao seu lado, um deles mais limpo e ainda sem uso deveria ser para limpar a boca, o outro, um tanto encharcado limpava seus olhos. Eu não podia ter invadido sua varanda, domingo não é dia de importunos, empatia não tem hora pra acontecer, mas justo agora que eu estava de barriga cheia? Logo hoje que chorar era mais fácil! Não sei bem quanto tempo passou, esperei pacientemente que ela acabasse sua refeição amarga, recolhesse a mesa e fosse à sua varanda receber a mesma brisa que eu... Eu não era o convidado do almoço, o prato extra na mesa arrumada, o motivo da roupa pomposa, mas acenei para ela quando nosso encontro fez-se real e possível. Em meio aos olhos marejados, dela e meus, balbuciei sem que ela precisasse entender, mas o domingo fez-se silêncio e ela pode ouvir: "Eu te entendo, Dona Saudade".
Recolhi a minha rotina, agora um tanto sensibilizado, envergonhado pela intrusão, fui à cozinha comer sobremesa, a saudade deixa vazios e amargos que apenas abraços e sorvetes podem curar.
Gabriel Melo 21/08/16