O GALO BICO DOCE
Tio Kiko era um sitiante daqueles que a gente só vê em desenho animado, com cara de bolo de milho e broa de fubá.Com seu cigarrinho de palha entalado no buraco do dente, fazia tudo sozinho, porque a mulher tinha uma preguiça de doer o couro, até para dar no couro! Quando não se dizia morta de cansaço, se dizia morta de raiva.E para não deixar aquela velha rabugenta bufando pelos cantos, todas ás vezes que precisava de uma ajuda, ele mesmo dava conta do recado e fazia de tudo um pouco, apenas para não ficar de papo pra lua, na pura vadiagem.
Era ele e o dragão da Dona Zilda; uma mulher que era sonsa por natureza e cheia de piripaques, mandando o infeliz plantar batatas logo cedo.Os dois não se entendiam nem matando!Um achava o outro um porre ! E assim iam levando a vida naquele fim de mundo, onde as horas se arrastavam lentamente pelo relógio, capengando aos poucos. Tio Kiko não tinha mais o que inventar para se divertir, já que o único “parque de diversão” da sua casa estava enferrujado por falta de uso .Precisava de uma emoção diferente e ficar de conversa mole com a bicharada tinha cansado sua beleza.
Sabia de tudo o que se passava dentro do sítio e o que não sabia, inventava.Era um modo divertido de matar o tempo sem que precisasse ficar na cola da patroa “congelada”; fria-fria, feito uma marmita de pedreiro.Nem bem clareava o dia e lá ia ele pra lida...
Até que de repente viu que alguma coisa estranha estava acontecendo no galinheiro.A festa comia solta e era pena voando para todo lado.
- Ê, galo Nenéca .Este não nega fogo mesmo.Sempre pronto pra dar o bote!Que inveja, meu fio!
Era o xodó da galinhada e apesar dos seus “duzentos anos” de praia, fazia acontecer.Como pode um caco daqueles bater o ponto todo dia, fazendo tio Kiko babar de pura inveja, tentando descobrir o segredo de sua poderosa atuação cinematográfica?Nenéca era um “coroa” vitaminado , de boa aparência , coxas grossas e bico doce .
- Conta para o papai o motivo de tanto sucesso, conta!
Mas que nada. Aquele galo nem tinha tempo para fofocas da oposição e queria mesmo soltar a franga que tinha dentro dele.
Garanto que se Dona Zilda tivesse um tratamento assim caliente, duvido que reclamaria tanto da vida feito um bruxa afoita .Ele sim precisava produzir feito o galo Nenéca, só para por aquela banha pra queimar num forró a dois!
Todas ás vezes que o galo percebia a presença de Tio Kiko na espionagem, fazia de tudo para se aparecer rindo dele com o biquinho até torto de tantas bituquinhas de amor .
Nenéca se fazia de morto e não contava para ninguém o segredo de sua saúde sexual, matando o velho de puro despeito .
Um dia, no auge do desespero, puxou o pescoço do galo para um canto, querendo saber se era algum tipo de ração, chá ou simpatia .
- Contaaa !
Precisava aprender com ele a usufruir o próprio charme para que a vida ficasse um pouco mais divertida.E com certeza lhe daria uma recompensa bem gorda, em seu nome e no nome de toda a mulherada da vizinhança.
Só que Nenéca era um galo discreto, de bico calado e colado também.Deixou entender que essas coisas não se falam por aí, como uma receitinha de bolo de fubá ; cada um teria que descobrir o seu modo de agradar, conquistar e ser feliz .
Tio Kiko ficou uma arara.Aquele abobado se achava o sabichão e tinha que levar um corretivo .
Para acabar com sua panca encomendou da cidade um outro galo, aumentando a concorrência.Ele era muito mais novo e bonito. Seria a nova atração do pedaço, deixando o velhacão jogado para as traças; definitivamente aposentado com seu pitombinho erótico!
Pronto, apareceu com Bitello debaixo do braço, alegre e sorridente porque quando a galinhada visse tamanha formosura, cairiam de paixão.Deu uma piscadinha para Nenéca , fazendo charme :
- Ah, a sua batata já está assando, galo de uma figa!
Agora sim estaria vingado e sacramentado.Pobre Nenéca ; estava com os dias de gloria contados nos dedos e na certa morreria de ódio por ser desprezado assim .Porém Nenéca era um galo velho, experiente e nem se abalou com aquele frangote.
- O galo morre pelo bico - pensava.
Deixou o palhaço ciscar daqui e dali, até bater as asas de vez e foi para um canto do galinheiro bem quieto, só na “sua”.Não deu um piu sequer, esperando a hora da virada .
Bitello , novinho de tudo, sassaricava pra lá e pra cá, mas tinha a língua frouxa e contava muita vantagem .
Tio Kiko ficava de pescoção querendo mesmo que os dois se bicassem, pois Bitello esbanjava juventude e sensualidade pelo galinheiro.Todos os dias ele vinha que nem um bicho louco saber das novidades :quem foi com quem, quantas vezes e blábláblá .
Ficavam de cochicho durante horas e Bitello lhe dava mil dicas; segredinhos apimentados, toquinhos, receitinhas, tititis ...
Não tinha freio na língua e contava tudo, se achando o gostosão.Nisso as franguinhas do galinheiro ficaram iradas e pasmas diante daquele fofoqueiro do caramba !
Sabe como é frangote novo; fazia de sua vida um livro aberto. Não tinha a mesma maturidade de Nenéca, que não queria ser leviano com ninguém.
- Nada a declarar - dizia, quieto em seu poleiro.
E não demorou muito para que a galinhada percebesse a diferença entre a pose devoradora de Bitello e a discrição de Nenéca.
Precisam lhe dar um desprezo e ele não suportou ser tratado como um qualquer.Era um esnobe, com seu peito estufado e sua coxinha fina, zanzando pelo quintal, apenas contando vantagem.
Até que o aniversário de dona Zilda estava chegando e Tio Kiko queria fazer uma graça para os seus parentes da cidade grande.Pensou em depenar um franguinho para fazer um ensopado, mas Nenéca já tava velho, duro e tinha a carne de tombar a dentadura.
Nisso caiu de quatro com os encantos de Bitello, que desfilava elegantemente pelo terreiro, tentando reconquistar a clientela.
- Que bíceps! Que triceps! Que gostosura de frangote!
E num cola brinco certeiro fez com que desmaiasse de susto, indo direto para a panela.Não teve tempo nem para dar o último suspiro.
A galinhada não acreditou quando viu Bitello em brasas, “fervendo” como sempre foi, rodeado de batatas, sendo devorado com muita categoria.Olhinho torto num olhar quarenta e três, meio amuado e finalmente de bico cerrado e calado, é claro!
Silmara Retti