19 DE NOVEMBRO – DIA DA BANDEIRA - “GUERREIRO SÓ SAI DE FORMA DESMAIADO”

1984 é o ano em que prestei serviço militar, no 16º GAC, na esquina das avenidas Theodomiro Porto da Fonseca e Unisinos, ao lado da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, em São Leopoldo, RS. Este foi o mesmo ano em que, pela primeira vez após o golpe militar de 1964, o presidente e vice da República não foram escolhidos pelos militares, mas pelo Congresso Nacional.

Sem entender de autorização ou não para deixar a guarnição militar nos finais de semana, feriados, etc., embora meu pai morasse em São Leopoldo, quando da inspeção de saúde registrei o endereço da minha mãe em Taquara, RS. Na verdade, por causa de desavenças com a nossa madrasta, há algum tempo eu tinha me determinado a não mais morar e nem mesmo pernoitar na casa do meu pai. E, sendo que efetivamente eu morava na casa da minha mãe (e Taquara tinha um atrativo especial para mim), todo final de semana eu ia para lá sem precisar de autorização para deixar a guarnição.

Todavia, quase cem por cento das vezes que para lá viajei eu não tinha dinheiro para passagem, haja vista nosso soldo de meio salário mínimo, com o qual mal pagava o curso de desenho publicitário que fazia, que me fora indicado pelo Tenente Ely. E, por não ter dinheiro, algumas vezes viajei de graça nos ônibus. Todavia, a maioria das vezes fui de carona em carros particulares, chegando a pegar carona até de uma DKW ambulância certa vez. Sendo assim, ao sair do quartel, as cinco da tarde na sexta-feira, me encaminhava à sinaleira da Tirolesa, na BR 116, onde, fardado, facilmente conseguia carona, sendo quase sempre direta até Taquara. Algumas vezes, porém, tinha que pegar outra carona no caminho, mas sempre ia rapidamente até o destino.

Em 19 novembro os militares comemoram o Dia da Bandeira republicana brasileira. Essa data não é feriado nacional. Conforme vi no calendário do ano de 1984, esse dia caiu numa segunda-feira, mas não foi feriado. Todavia, me recordo como se tivera sido num domingo, haja vista a dificuldade que tive para retornar de Taquara a São Leopoldo de carona. Domingos e feriados eram dias cruéis para pegar carona, mesmo que fardado de milico, pois a maioria dos carros trafegam ocupados com as famílias a passeio.

Porque costumo me antecipar a tudo, por prever que podem surgir contratempos no transcurso, imaginando a pior das hipóteses por ser um dia difícil para conseguir carona, sai da casa da minha mãe bem cedo, dirigindo-me para a rodovia RS 239 por volta de sete horas da manhã. Não costumava, entretanto, parar em algum ponto para pedir carona, mas seguir caminhando pelo acostamento e atacando os carros conforme passavam. E, dessa forma, durante boa parte da manhã, caminhei vinte e três quilômetros até Sapiranga, conseguindo carona por volta de uns cinco quilômetros após passar pelo centro da cidade, próximo ao ponto onde hoje está o posto da Polícia Rodoviária Estadual, preocupado se conseguiria chegar no quartel a tempo de almoçar.

Mas a carona que consegui foi curtinha, indo até Campo Bom, onde consegui outra curta até Novo Hamburgo e aí demorei algum tempo para conseguir carona ao menos até qualquer ponto em São Leopoldo e já me questionava se conseguiria chegar a tempo para a solenidade.

Por sorte, a última carona me deixou na Tirolesa, mas já estava bem avançado o horário do almoço no quartel. Desse ponto dei uma boa esticada até o quartel, mas ao chegar, muito cansado e com muita fome, o rancho já estava vazio e os rancheiros já tinham recolhido as bandejas do buffet. Restou-me tomar muita água para amenizar a fome e aguardar pela hora da solenidade, que felizmente, já estava quase por ter início.

Mas era um dia de sol escaldante. E, embora todas as demais sub unidades estariam trajando farda de passeio (de tergal, bem mais fresca), a Primeira Bateria seria a bateria de honra e por isso estaria trajando farda de serviço, com capacete e fuzil.

Então me fardei, encaminhando-me logo para a área da formatura, de frente para o mastro da bandeira, na Alameda, em frente ao Rancho, sob um tremendo olho do sol. Tomei muito mais água, mas, à medida que o início da solenidade se demorava, o vazio no meu estômago se manifestava em forma de dar calafrio e tontura. Mas, para meu alívio, logo a solenidade teve início e rapidamente foram sendo executados todos os rituais, restando finalmente somente a queima da velha bandeira e o hasteamento da nova.

Como sempre, eu estava alinhado na primeira coluna, de frente para as autoridades, de cara para o Coronel, que costumava chamar a atenção de qualquer um dizendo para chocar os “carcanhá guri”. Com o vazio do estômago me engolindo por dento, produzindo mal-estar e tontura sem fim, ouvi chamarem o praça mais antigo para queimar a bandeira, solenidade esta que parecia não ter mais fim. E, enquanto o sol queimava a moleira sob o capacete de fibra, o suor brotava da cabeça para face, bem como por toda testa e pescoço, uma típica dormência subia lentamente dos pés e eu tentava dissipá-la usando a técnica de mexer os dedos dentro dos coturnos, como nos tinha sido ensinado já nos primeiros treinamentos. Entretanto, a dormência foi subindo pelas canelas, ultrapassando os joelhos e chegando as cochas, tomando conta depois dos quadris, quando escureceram-se as vistas. Daí respirei mais fundo em busca de oxigênio, apartando bem os olhos para vencer a tontura...

Minha próxima percepção foi a de um cano a cutucar o meu vazio. Ouvia voz do Sargento Cosme respondendo que o guerreiro tinha quebrado o queixo. Tonado consciência da situação, imaginei que tinha desmaiado e quebrado meu maxilar, percebi em seguida que o Sargento corria comigo nos braços para enfermaria, o cano da sua metralhadora Bereta em bandoleira cutucava meu vazio, o senhor da cantina tinha lhe perguntado o que se passara e, a passos largos e ofegante, ele respondeu que o guerreiro tinha quebrado o queixo.

- Puxa vida! Estou frito, pensei. Meu maxilar deve estar todo quebrado e meu rosto desfigurado!

Depois os colegas contaram que o tombo do meu desmaio foi espetacular. Caí como um poste, ereto e em posição de sentido, ficando somente a cabeça para trás e, ao cair, o queixo bateu no chão com tudo.

Na única vez na vida que andei numa Chevrolet Veraneio, acompanhado do Sargento Cosme, o soldado Veltes dirigiu rápido até o Pronto Socorro do Hospital Centenário e lá levei cinco pontos que produziram a cicatriz que carrego até hoje.

Naquela tarde o Coronel veio com o Capitão Rossi Machado me visitar na enfermaria e parabenizou-me pela bravura de não ter saído de forma a não ser desmaiado.

Disse ele:

- Isso sim é guerreiro – só sai de forma desmaiado.

Agradeci-lhe o elogio, mas esclareci que eu não sabia que era assim que se desmaiava, pois jamais desmaiara antes, e se soubesse teria saído de forma antes, como normalmente os colegas faziam.

O que valeu foi que por uns dias fui dispensado pelo médico de fazer a barba. Como tínhamos vontade de deixar a barba crescer! Entretanto, por esses dias fui convidado para ir à Saicã para atuar de rádio operador numa fascinante simulação de combate muito realista lá, mas não pude ir porque o ferimento ainda com pontos poderia se abrir com o esforço físico requerido por esse exercício intenso.

Wilson do Amaral