Sotaque mineiro
Sempre me interessei por idiomas e nisso aí fui prestando atenção em sotaques e melodias frasais. Essas, então, denunciam para um entendedor o lugar de origem do falante, às vezes apenas ao atender uma ligação e dizer alô.
Uma vez, em Copenhague, Dinamarca, atendi ao telefone uma brasileira que pedia informações gerais sobre a vida na cidade. Era estudante de pós graduação, recentemente chegada ao país. Enquanto conversava, percebi o sotaque e pedi confirmação:
- Mineira de Belo Horizonte?
Confirmou. Expliquei o porquê daquela pergunta e ela também perguntou de onde eu era. Quando disse que era de Pitangui, Minas Gerais, teve uma surpresa e tanto.
- Não acredito! Passava todas as férias da minha infância na casa da tia Canducha.
- O que? A professora de piano?
As recordações vieram imediatamente. Canducha era o nome pelo qual todos a conheciam, uma senhora já de idade avançada, pelo menos para mim na época. Passávamos, no caminho de ida e volta do Ginásio, pela frente de sua casa, na Rua Martinho Campos, lado esquerdo de quem sobe em direção à Praça do Jardim. Quando ginasianos, adolescentes, nunca dávamos muita atenção, mas me lembro de sempre ouvir o som do piano vindo pelas janelas abertas, que naquele tempo, gente, ficavam abertas sim. E até as pesadas portas da entrada, que se abriam para o corredor, quase sempre eram mantidas abertas. Eram outros os tempos!
Já estudante de Letras em Belo Horizonte, metido nas composições com o Reinaldo “Rohr” Pereira, recordo-me de ter ido uma vez à sua casa e, com o seu consentimento, gravei uma ou duas de suas composições, bem como de sua interpretação de uma valsa conhecida.
Tenho pouco a lamentar da vida, uma das lamentações é ter perdido a fita de áudio-cassete em que estavam gravadas aquelas raridades. Talvez a tenha emprestado a algum dos amigos seresteiros, porque, com o preço e as dificuldades de se comprar fitas cassete na época, muitas vezes a gente emprestava fitas já gravadas, porém com espaço para uma ou outra gravação.
Emprestava com a recomendação de não gravar sobre os trechos já gravados, mas quem podia garantir que alguém numa serenata, a cuca cheia de cana, ter o cuidado de escolher um trecho virgem da fita? Agora é tarde, as suposições não resolvem nada. O certo é que não tenho mais as gravações e duvido que alguém tenha gravado Tia Canducha. Ou terá? Talvez a sobrinha, quem sabe.
Pois bem, voltando a Copenhague e à brasileira do sotaque mineiro: seu nome era Leda Beirão. uma pessoa maravilhosa, que, hoje, não sei onde anda.
De outra feita, ainda em Copenhague, liga uma senhora bastante afobada, como se diz em Minas, dizendo que chamava por uma questão de emergência. Era tradutora e intérprete de um grupo de funcionários da Mendes Júnior, que tinham feito escala em Copenhague com destino a Bagdá, no Iraque, onde a empresa tinha obras. Estamos falando de 1978, 79. Dois dos passageiros tiveram algum problema para embarcar e foram obrigados a permanecer em Copenhague. A intérprete tinha ficado para solucionar a questão.
Ao apresentar-se no telefone, reconheci logo o sotaque mineiro, mas dessa vez sabia que não era de Belo Horizonte. Enquanto pensava de que região, mais ou menos, podia ser, pareceu-me reconhecer sua voz, mas pensei que era impossível. Mas não era. Era, sim, a voz de uma ex-colega de Faculdade em Belo Horizonte, no curso do Premem, onde tínhamos estudado Inglês por 10 longos meses, 8 horas por dia.
Com mais essa informação, não tive dúvidas
– Tina, você sabe com quem está falando?
Era a Tina, Ernestina Leal Pereira, ótima aluna, excelente colega, que ali estava em Copenhague exercendo o conhecimento adquirido na sala de aula.
Realmente os fatos são extraordinários, porque na década de 1970 não havia tantos brasileiros percorrendo o mundo ou residindo no exterior. Encontrar duas brasileiras em tão curto espaço de tempo – e duas pessoas com proximidade tão grande – realmente era de se contar.
Esse encontro casual com as duas deu-me o prazer de ouvir o delicioso sotaque mineiro no mundo escandinavo. Foi o bastante para matar a saudade de casa, naquele tempo sem as facilidades tecnólogicas de hoje em dia.