_____________ O CARRO VERMELHO

 
Altamente suspeito! Um carro vermelho, modelo esquisito, de vidros escuros corridos, parado de madrugada em frente ao seu portão? Altamente suspeito! Deu meia-volta, acelerou. Nunca que arriscaria a entrar em casa diante de uma ameaça daquelas. Os tempos andavam duros. Assalto à mão armada um atrás do outro. A população em constante sobressalto, rádios e jornais locais enfileirando ocorrências policiais sem pular um só dia...

Não, não, de jeito nenhum. Não era maluca de se arriscar. Pessoas conhecidas  tinham já passado um perrengue danado,  tendo suas casas invadidas. E o golpe era aquele: a bandidagem de sentinela, esperando a vítima nos portões de suas residências. Rodeou o quarteirão, passou mais perto. Lá estava o veículo vermelho paradinho rente à calçada. Às horas mortas da noite, não podia ler a placa, mas vislumbrou o adesivo  em destaque no vidro traseiro Beba Leite. Beba Leite? Era truque! Aquele inocente Beba Leite era só pra despistar as verdadeiras almas frias abrigadas no interior do veículo  combinando, certamente, muito mais com um Beba Sangue. Suas suspeitas agora eram certezas absolutas.

Nenhuma vivalma na rua. Mas o carrinho lá, como que brotado de um filme de terror. Que droga de carro era aquele? A vizinhança dormindo e o fantasma sanguinolento estacionado bem na sua porta? Azar demais, escolher logo seu meio-fio pra se ajeitar, dando a impressão de que não pretendia arredar pneu tão cedo. Claro que a esperava. Só podia! O (SIC.) – Serviço  de Informação do Crime, com certeza sabia que  naquela noite ela estaria voltando do Torneio de Buraco na cada da Magali, no meio da madrugada.

Mas não ia ser mole apanhá-la com a boca na botija, ou melhor, com a chave no portão. Daria voltinhas pelos arredores até que o carrinho vermelho desistisse e sumisse de suas vistas. Verdade que, dando voltinhas pela cidade àquela hora, também corria lá os seus riscos, mas entrar em casa com um revólver na cabeça isso não ia, não!  Sentiu o frio metal da arma lhe pressionando a testa, teve um calafrio. Ah, que horror! Mil vezes ser pega de surpresa dando voltinha a esmo pela cidade  que ofertar-se à tragédia anunciada.

Polícia!  Claro, ligar para a Polícia e pedir proteção! Por que não fizera isso ainda? Tentou, mas o 190 só dava ocupado. Certamente atendiam a outras ocorrências. Em noite de sabadão, o que não faltava era confusão. O jeito era esperar o dia amanhecer, o que não ia demorar muito. Bandido também tem sono, e tomara que tivessem bebido muito leite com Rivotril e fossem pra casa mais cedo, desistindo de esperá-la no portão.

Que situação!  Maldita ansiedade! Ligou o rádio do carro para se distrair, enquanto trafegava sem rumo e sem Norte de um quarteirão a outro...  Foi então que ouviu pelas ondas da Cento e Dois Vírgula Nove, a voz de Cândido Francisco, o locutor das madrugadas, anunciando, pra variar, uma perseguição policial:  bandidos tinham assaltado uma fazendinha nos arredores e levado o carro do proprietário.

O radialista repetia a notícia de última hora, num  eloquente apelo aos seus assíduos ouvintes insones: "Quem souber de alguma coisa, entre em contato... O carro usado na fuga é vermelho, com um adesivo de Beba Leite no vidro traseiro... Boa recompensa pelas informações!".  Mal podia acreditar!  Acelerou na volta pra casa, rindo descontroladamente, como se lhe tivesse acontecido a coisa mais engraçada do mundo...