Itaúna, MG, paraíso do adolescente
Não sei se Pitangui era tão feia na realidade como me parecia naquele tempo ou se era só por ser o lugar onde vivia a rotina diária. Só sei que adorava Itaúna, quem sabe só por ter loja de eletrodomésticos que tocava a toda altura o “Se Piangi, se Ridi”, sucesso italiano da época, que dilacerava o coração do adolescente. Itaúna tinha também asfalto, enquanto Pitangui ainda tinha muitas ruas sem calçamento, e a poeira colava na pintura das casas, depois de ter sido barro no tempo de chuva.
Sempre tive algum parente morando em Itaúna. Quando criança, as viagens eram com papai, mamãe ou com minha avó paterna, Isabel, que ia visitar meu tio, Tito Lívio Pereira, funcionário do então Banco do Comércio e Indústria de Minas Gerais. Vovó Abel, como a chamávamos, chegou a morar lá algumas vezes, uma delas coladinha no então Ginásio Santana. Outra residente de Itaúna foi minha tia Laura, irmã do meu pai. E sua casa, cheia de filhos, era o lugar mais interessante de passar férias, entre a primarada, colchões esparramados pelo chão, sem hora de dormir nem de acordar.
Portanto, Itaúna sempre era um porto seguro. Mais tarde, quando o tio Tito se casou, a referência passou a ser também a casa dele. Outra referência foi a tia-avó, essa pelo lado materno, Maria Barbosa, irmã de minha vó Aurora, ou Lóia, ou Lurica, tudo a mesma pessoa. A tia Maria Barbosa, toda a família conhecia por Mandé, e sua filha, prima-primeira de minha mãe, a Pinguinha, Maria Pereira, do lado paterno, parenta dos Máximo Pereira, de Pitangui. Pinguinha ... que apelido! Dava margem a muitas piadinhas, quase sempre repetidas! Nos anos a que esse relato se refere, Mandé e Pinguinha passaram a ser os pousos e referência para o adolescente pitanguiense que ansiava por novos ares.
Corriam os anos de 65, 66 e talvez 67. Pitangui tinha dois cinemas, o Pitangui e o Cetepense, mas esse último era exclusivo dos operários da Companhia de Tecidos Pitanguiense. Mas Itaúna já tinha 3: o Rex, o Bagdá e o da Companhia de Tecidos Itaunense, que ia virar Santanense um dia, localizado na descida da rua Silva Jardim, quase na rua da linha de trem. Tinha também outros atrativos, como o Clube Social, imponente, quase em frente à funerária do “Seu” Alfredo, sogro do meu tio Tito, pai da Maria, sua esposa, e das irmãs Hilda, Emília e das mais novas, cujo nome esqueci, além dos homens, Michel e Zezé.
E mais: Itaúna tinha carnaval de rua. Lembro-me de duas escolas de samba, Zulu e Unidos da Ponte. Pitangui só tinha o carnaval de clubes, que era mais formal e limitado a um espaço e tempo. Era o do Pitangui Clube, naquele bequinho estreito, que, descendo, nos leva à Padre Belchior. Tinha também o Brasília Clube, no Edifício Liliza, que vivia abrindo e fechando, cada vez com um novo nome. Faltou só ter o nome de “Sob Nova Direção”. Por um curto período de tempo, houve um outro clube na Rua Padre Belchior, que, de acordo aos preconceitos de época, diziam ser dos pobres e pretos, em frente à casa do Dr. Waldemar Campos, mais ou menos no lugar onde se dava o encontro de Jesus e Maria, na quarta-feira da Semana Santa.
Mas era tudo arroz-com-feijão. Itaúna, a apetitosa novidade, passou a ser o caminho da roça nas férias e, depois, na época de Carnaval. Nas primeiras vezes, ia com papai ou mamãe ou vovó Isabel. Depois, com uns 15 anos, já ia sozinho. Não me lembro se precisava autorização, acho que não. Saía da poeira de Pitangui e pegava o empedrado de Pará de Minas até Juatuba. Lá a gente descia, o ônibus seguia para Belo Horizonte. O ponto de baldeação era um bar situado na bifurcação da estrada que vinha de Belo Horizonte. Ali se esperava o primeiro ônibus que passasse no caminho de Itaúna. Às vezes o ônibus vinha cheio, passava direto, jogando poeira nas nossas malas. É, a estrada ainda não era asfaltada. Viagem demorada, mas era tudo festa.
Havia a alternativa do trem, com baldeação em Azurita, mas era no tempo que minha avó me levava, depois só me lembro de viajar de ônibus. Lembro até da estação do Velho da Taipa, onde uma vez ficamos esperando o trem por horas, distraído com o quadro da tentação de Adão, uma serpente matreira, escondida na folhagem, já sabendo que ia botar a perder o ancestral de todos os humanos.
Chegando a Itaúna, não havia rodoviária. A parada era no Ponto Chic, na Praça Augusto Gonçalves. Dali, ia pra casa da Mandé, na rua Manoel Gonçalves, a uns cem metros da Praça da Matriz. Um pouco mais para baixo da casa da tia, havia uma casa, cujo alpendre ficava sempre cheio de mocinhas e rapazes, escutando música e conversando.
Um dia, depois de me verem espiando com olhar comprido na direção daquele alpendre, me convidaram pra entrar e, dias depois, eu já era mais um dos confrades, escutando os sucessos da época. Ia de California Dremaming a Agnaldo Timóteo, que cantava versões de música italiana e francesa, até o sucesso do momento de Roberto Carlos. Num dos carnavais, amizades e interesses já cimentados, veio a menina dona da casa, chamada Elaine, e me convidou pra ir no Baile de Carnaval do Clube Social com ela. Tinha até convite e, manuscrito, o meu nome. Ela deixou claro, nos seus 14 anos, que não ia sozinha: a irmã mais velha e o noivo nos acompanhariam. Ou seja, tinha vela.
Foi emocionante ir a um carnaval de clube, mãozinha dada, dançar no salão, tudo em família, porque quem nos levava – e fiscalizava – era a irmã, que devia chamar-se Eliana, por questão de paralalelismo onomástico.
Quando as férias ou feriados terminavam, era hora da tristeza de pegar o ônibus, ir até Juatuba, esperar o ônibus de Belo Horizonte, ou, se viajando de trem, descer na Azurita pra pegar o trilho – literalmente – no caminho de casa, com baldeação em Velho da Taipa. E enfrentar de novo a poeira de Pitangui.
O coração ia triste, mas restavam os consolos masoquistas da música romântica da época, principalmente a italiana. Uma delas era a versão de Agnaldo Timóteo, clássico de Sérgio Endrigo, o “Aria di Neve”. Mas o mais triste mesmo era escutar “California Dreming” em Pitangui, sozinho, enquanto que, em Itaúna, na Rua Manoel Gonçalves, mocinhas e rapazes, na radiolinha Sonata, entre elas uma mocinha em especial, se divertiam sem mim. A melancolia do adolescente era inevitável e só amainava quando chegava, pelas mãos do Chico Carteiro, um envelope azul com meu nome e endereço em letrinha delicada,. O envelope era rasgado com sofreguidão, na ânsia de encontrar um vocativo mais contundente, como “eterno Amor” ou coisa parecida. No entanto, as liberdades da época não permitiam que a donzela passasse de um “meu querido amiguinho”, que, se não era o vocativo ansiado, dava esperança de algo mais amoroso na carta seguinte.